33 - Depois de salvarem o mundo - Hérois - Capítulo 07
Portas e janelas
Faziam dois dias que André acordou no seu mundo original, nesse tempo ainda não tinha olhado para o céu, deitado na grama ao sol, ou qualquer outra coisa que ele estava acostumado a fazer nos últimos anos. Apenas tinha ficado trancafiado, se recuperando, na sede da Divisão de Segurança chefiada por Felipe.
Mas pelo menos a comida desse lugar era boa, ele estava bem nutrido e recuperado, todos os dias tinham três refeições intercaladas por uma infinidade de lanchinhos fora de hora.
Foi em desses momentos de tentativa de extinguir os biscoitos da cozinha, que ele foi surpreendido por uma garota que ainda não tinha visto, ela era baixinha, talvez não medisse mais do que 1 metro e meio, usava óculos enormes e tranças, ficando com cara de idiota, vestia um traje diferente dos guardas, era uma jardineira jeans com uma blusa colorida por baixo.
— MEUS BISCOITOS! — Ela gritou ao entrar na cozinha — Então era você que estava esvaziando o meu pote de biscoitos.
André não esboçou nenhuma reação a princípio, porém ao ver a expressão de ódio nos olhos da garota, arremessou o pote de vidro em direção a ela, que aparou com agilidade, em seguida se afastando.
— Meus preciosos… — Dizia a garota estranha enquanto fitava os petiscos através da transparência do vidro que moldava o objeto em suas mãos — Mamãe tá aqui…
André continuou a observar a garota que salivava e contemplava os biscoitos abaixada em um canto da cozinha.
— Eu não sabia que eram seus… — Ele tentou explicar.
— GRRRRRR! — Ela não respondeu, apenas rosnou.
Felipe abriu a porta e entrou na cozinha também, ao ver a cena não pode conter a risada.
— Ha-ha-ha-ha… Não acredito! Você está agindo igual a uma louca por uns biscoitos?
— Não são uns biscoitos. — Respondeu ela fazendo beicinho — São os melhores da confeitaria da esquina…
Felipe ainda ria enquanto passava pela garota indo em direção a André, puxou uma cadeira e sentou ao lado do seu companheiro de aventuras de outro mundo.
— Essa lesa aí é a Lídia — Disse Felipe apontando para a garota abraçada com o pote de biscoitos — Ela é o meu braço direito aqui, dá para acreditar?
— Você tem o dom de atrair pessoas estranhas… — Ironizou André — Acho até que essa aí…
André não terminou a frase, apenas gesticulou com o punho girando em volta do ouvido.
— Não esqueça que você também está sempre perto de mim. — Rebateu Felipe — Nem mesmo Kawã quis você na base dele e o enviou para cá.
— Talvez achem que você é o único que pode me “controlar”… — Insinuou André.
— Talvez… Mas eu te conheço bem. E sei que você é incontrolável. — Concordou Felipe.
— E você é o mais perigoso de todos. — Retrucou André — O único que conseguiu me vencer duas vezes, e nem é um combatente, acho que você ainda é subestimado, até aqui nesse mundo tomando de conta de um lugar desse enquanto poderia estar explorando tudo por aí…
— Não há muito o que ser explorado aqui, tudo que precisamos está na internet — Felipe fez uma expressão de desânimo, retornando em seguido à sua habitual cara sorridente — Mas tudo tem seu lado bom, acredita que aqui existem histórias que se parecem muito com o que aconteceu conosco, você precisa ler.
André não disse nada, apenas concordou.
O sorriso no rosto do jovem negro de dreads e jaqueta amarela contrastava muito com a expressão séria e gélida do rapaz anêmico de cabelos castanhos desgrenhados. Lídia assistia a cena dos dois conversando enquanto esvaziava o pote de biscoitos, parecia um espectador no cinema com um balde de pipocas.
— Conte-me… — Felipe disse levantando-se e indo em direção a geladeira, tirou dois sanduíches enrolados em papel filme, entregou um para André, fazendo o favor de desembrulhar antes — Como conseguiu atravessar?
A constante expressão séria de André foi aos poucos mudando, ficando um pouco amarga, ele deu um longo suspirou, mordeu o sanduíche e começou:
— Para começar, lembra das ruínas da cordilheira? Lá no que sobrou do antigo Reino de Pedra? — Fez uma pausa, engolindo o sanduíche — Havia uma inscrição sobre as 7 chaves que abrem as portas entre os dois mundos…
— Sim, eu sei — Retrucou Felipe — Fui eu que descobri, e a Zita me ajudou a traduzir… Ficamos duas semanas lá, nunca vi lugar para ter tanto inseto… E a água tinha gosto de ferrugem.
— Mas esse é o problema… — Interrompeu André — A tradução foi incompleta!
Os olhos de Felipe quase saltaram do rosto.
— Está me dizendo que traduziu as últimas partes do texto original? Como fez isso?
— Sim! Não foi fácil, mas consegui traduzir. — Respondeu André com bastante calma — E para a minha surpresa, revelava a existência de uma oitava chave, criada por uma existência mais antiga, essa chave não abre portas, e sim janelas…
— Uma existência mais antiga que os deuses? E como assim “janelas”? — O sorriso habitual de Felipe havia sido substituído por uma expressão de curiosidade.
— Não é um meio convencional — Respondeu André — E não depende do poder dos deuses, pois é uma chave que não foi construída por eles — Nesse momento ele deu mais uma mordida no sanduíche — Ah! E ela pode ser usada quantas vezes precisar… Pelo que eu entendi, é tipo uma chave mestre.
Lídia não conseguia acompanhar totalmente o assunto, mas conseguia entender o básico, ela lembrava que para retornarem, os 32 heróis usaram a sétima chave, que ao fechar o portal se quebrou, aparentemente, cada chave só podia abrir uma porta entre os dois mundos, e após fechá-la, o objeto criado pelos deuses do outro mundo se quebrava, impedindo que fosse usada novamente.
— Onde está essa chave? — Indagou Felipe com uma expressão séria
— Até onde eu sei… — André mordeu o sanduíche outra vez — Está com Kawã… Não foi ele quem ficou com as minhas coisas?
— Isso pode ser problemático… — Resmungou Felipe — Kawã trabalha justamente no laboratório de pesquisa e desenvolvimento, o lugar que estuda viagem entre os mundos e busca uma forma de abrir um portal pelo nosso lado. Se eles descobrirem a tal chave, vai ser problemático.
— Que nada, está em uma caixinha de madeira, ele não sabe o que é… — André fez um gesto com o punho enfaixado em direção a Felipe, para que esse se acalmasse.
— O QUÊ? — Lídia não pode se conter — Como uma caixinha de madeira pode proteger uma chave tão importante?
André terminou de comer o seu sanduíche, tomou um gole de água e falou calmamente:
— É madeira da Floresta Eterna, selada pelos magos do deserto, só eu sei como abrir aquela caixa.
Lídia parecia não acreditar, mas Felipe aparentava estar mais calmo, e isso acalmou a garota.
— Desde que voltamos, muitas pessoas tentam encontrar uma forma de abrir a porta por esse lado. — Explicou Felipe — Se descobrirem que você usou essa chave para pular a janela, os dois mundos podem estar em risco.
— Mas eu não pulei a janela! Eu nunca disse que usei a chave… — Retrucou André — Eu tentei bastante, só que não consegui fazer funcionar! Se conseguisse fazer aquela coisa funcionar, teria chegado aqui antes.
Felipe estava cada vez mais confuso, não conseguia falar nada.
— No mesmo texto que falava da oitava chave, falava ainda do que separa os dois mundos… — Continuou André — “O tecido da realidade”, e que as ruínas de Motog escondiam o segredo para romper esse tecido…
— Motog? O templo dos mortos? — Atalhou Felipe — O sábio da torre certa vez disse que esse lugar era o berço dos deuses, mas não existem provas de que exista…
— Existe! E eu achei! Com a ajuda de um velho amigo… — Retrucou André — No deserto, bem no centro, enterrado na areia a dezenas de metros de profundidade, e lá estava a resposta.
— Qual? — A curiosidade de Felipe era visível.
— Poder. Sacrifício. Força de vontade. Ser louco o suficiente… — André descrevia como ingredientes — E muito sangue!
— Por isso seus braços…. — Felipe murmurou — Então a lenda é verdade?
— Sim! — Assentiu André — Você estava certo!
— Nunca canso de ouvir essa frase, não importa quantas vezes ela seja dita.
— Narcisista… — André murmurou.
— Você entende que isso muda tudo?
— Claro. Só não podemos deixar ela cair nas mãos inimigas.
— O Cavaleiro de Prata… — Felipe encarou André — Deixa essa parte comigo.
— É claro. — André deu de ombros — Meus planos nunca dão certo mesmo.
Felipe finalmente sorriu, e terminando de engolir o sanduíche que segurava, levantou-se e olhou para Lídia sentada no chão segurando o pote de vidro vazio, em seguida fez um sinal com a mão, indicou que estava na hora de voltar ao trabalho.
André também se levantou, ao saírem da cozinha, André seguiu por outro corredor dizendo:
— Vou encontrar o Valmir, ele me disse que tem uma área de treino aqui… Preciso entrar em forma.
— Não tem necessidade. — Lídia disse — Esse mundo é pacífico.
— Com a sorte que eu tenho, não existem lugares pacíficos. — André discordou — Perdi muito tempo dormindo, preciso me preparar para os eventos futuros.
Enquanto ele sumia pelo corredor, na direção oposta à de Lídia e Felipe, a secretária perguntou:
— De quais eventos futuros ele estava falando?
— Vai saber. — Felipe suspirou — Ele não tem um passado muito florido, sabia? Os últimos doze anos para aquele cara foram bastante complicados. Eu tenho pena dele…