Laços do Luar - Um novo mundo - Capítulo 1
Ascensão e Queda
Abri os olhos com um sobressalto. O grito do pesadelo ainda ecoava nas paredes do quarto. Meu rosto estava molhado pelas lágrimas que sempre me acompanhavam nesses sonhos, e o aperto agonizante em meu âmago parecia real demais para ter sido só imaginação.
Sentei na beirada da cama, respirando fundo, as mãos apertando o peito num esforço para acalmar a tormenta interna. Aos poucos, os pensamentos pesados se dissipavam, dando lugar a uma resignação que já conhecia bem.
Agora uma nova batalha se iniciava enquanto tentava convencer a mim mesmo de que era só mais uma manhã. Só mais um Outro dia vazio, como todos os outros.
A casa estava em silêncio. Nada além do gotejar irritante de uma torneira na cozinha. Meus pais, como sempre, estavam viajando — ou fingindo que estavam ocupados demais pra lidar comigo.
Crescer naquele apartamento era como viver dentro de um museu de conquistas alheias: medalhas reluzentes nas paredes, diplomas emoldurados, troféus dourados dominando a sala. Dois prêmios Nobel reluziam entre eles: um de Física e outro de Química.
Qualquer pessoa, mesmo que leiga, ficaria impressionada e talvez até intimidada ao ver as grandes medalhas de ouro junto ao diploma com o nome laureado de Laura e Ricardo Drumont.
Gênios. Lendas vivas. E pra mim… fantasmas.
Fitei aquelas conquistas. Por fora, impecáveis, reluzentes. Por dentro, uma prisão feita de expectativas impossíveis. Era uma mensagem clara: você nunca vai chegar lá. Eu sabia disso — e sabia também que, para eles, eu era apenas o “filho que não vingou”. A mancha no legado da família.
Eu sempre soube que nunca seria como eles. Os professores sabiam. Os colegas sabiam. Até o papagaio da vizinha sabia.
Na escola, ninguém esperava nada de mim — com exceção dos puxa-sacos de plantão, que só se aproximavam tentando cavar uma vaguinha na sombra da fama dos meus pais, esses definitivamente eram os piores.
Depois de um café tomado sem fome, saí pra mais um dia comum: cinza, previsível e doloroso. Na época, tinha dezessete anos — aquela idade onde tudo parece desabar, mesmo quando a vida é estável. Agora, imagine ser o “filho dos gênios”, invisível em casa e alvo fácil na escola.
E são justamente nesses momentos da manhã que todo aquele maldito processo recomeça. Meu coração se aperta com um peso vazio, enquanto milhares de pensamentos se amontoam, disputando espaço na minha cabeça já cheia demais.
Apenas mais um dia sem sentido — pensei, num sussurro. Por que continuar? Se eu sumisse agora, ninguém notaria. Muito menos meus pais.
Logo, uma raiva repentina tomava conta de mim e meu foco se redirecionava.
Ou talvez notassem… talvez se eu quebrasse cada um daqueles prêmios ridículos que apenas inflam seus egos podres. Símbolos da opressão e da falta de fé no filho patético. Se fossem destruídos, finalmente eles me notariam de novo, mesmo que com raiva.
Mas aí vinha uma calmaria momentânea, clareando minha mente por um instante, uma voz que sempre tentava me manter de pé:
Não! Quando me formar, vou finalmente sair daqui. Ninguém vai mais me machucar, só preciso aguentar mais um pouco…
Todos os dias essa luta ocorria dentro de mim. Angústia contra esperança, fúria contra serenidade. Como dois lados de um cabo de ferro puxando meu pensamento para direções opostas. E, por mais que eu tentasse acreditar que dias melhores viriam, nunca era o bastante.
No caminho até a parada de ônibus, avistei Jéssica. Uma antiga amiga de infância, ou pelo menos era assim que eu gostava de lembrar. Agora, ela parecia outra pessoa: bonita, confiante, adorada por quase todo mundo.
A líder natural da escola, como se fosse feita para isso — e claro, isso era o completo oposto de mim. Estava sempre acompanhada dos mesmos rostos que eu evitava — incluindo David, o grandalhão que nunca perdia a chance de me fazer de alvo.
O ônibus estava mais cheio do que de costume naquele dia. Todos falavam animados sobre a feira de ciências. A competição anual prometia bolsas e destaque para quem mandasse bem e Jéssica, com sua maquete protegida como se fosse uma relíquia, era a favorita disparada.
Ela carregava uma bola de vidro no centro da maquete, e seu olhar ficava nervoso toda vez que alguém chegava perto demais.
— A competição é só uma formalidade, né? A Jess já ganhou — disse uma garota ruiva, admirando a esfera de vidro da maquete.
— Claro que ganhou — respondeu David, esbanjando confiança. — Olha essa belezinha.
— Quietos! — a garota os repreendeu, um pouco irritada. — Não basta os solavancos dessa lata velha, cuidem para ficarem o mais longe possível do meu trabalho, principalmente você, David.
— Ok, ok — David levantou os braços em sinal de rendição, soltando uma risada leve. — Mas afinal, o que esse troço faz? Você ficou o semestre inteiro trabalhando nisso.
— Mapeia memórias ruins — Jéssica respondeu, com um sorriso tímido, mas orgulhoso. — A ideia é ajudar as pessoas a bloquearem traumas. Tipo esquecer aquelas cagadas que você já fez na vida, sabe? — ela riu, como se fosse uma piada entre amigos.
Enquanto eles riam e se exibiam, eu apenas observava, calado, mais uma vez sentado no fundo do ônibus. Longe das rodas de conversa, longe das piadinhas que nunca eram para mim, mas quase sempre sobre mim. Longe do mundo que parecia girar sem me incluir.
E, ouvindo aquelas risadas e conversas animadas, me peguei pensando como deve ser bom ter alguém de verdade para dividir ideias e momentos.
Chegando na escola, permaneci em silêncio, capuz do moletom puxado até os olhos. Evitava qualquer olhar ou risada, qualquer contato. Fui direto para a sala, onde o burburinho da feira já fervilhava no pátio. Os professores entraram pouco depois.
Assim que todos se acomodaram, dois professores responsáveis pela turma adentraram a sala.
— Muito bem, turma, hoje é um dia especial para muitos de vocês — disse o professor Vanderlei, um homem na casa dos trinta anos que usava óculos escuros mesmo dentro da sala. Eu nunca entendi por quê, mas era o professor mais divertido que tínhamos.
— As sementes para o futuro estão em suas mãos — continuou — e se elas vão crescer e florescer depende só de vocês.
— Este ano, teremos a visita de um membro do Instituto de Biotecnia do Império Latino — acrescentou a professora Helena-Shang, com seu tom sério e profissional — pioneiro no estudo tecnológico de bio-robótica e combate ao câncer.
Helena era descendente de uma prestigiada família do antigo Império Huaxia que havia se estabelecido na cidade. Nos últimos anos, investiram pesado em tecnologias ambientais, e muitos familiares ocupavam cargos importantes.
— Agora, sem mais enrolação, sigam para o pátio e preparem seus estandes para as apresentações.
Depois de atravessar a multidão agitada de colegas, finalmente cheguei ao meu estande. Uma mesa pequena, quase vazia. Meu projeto era simples, pelo menos visualmente: uma caixinha cinza e algumas etiquetas brancas com códigos QR.
Do outro lado, o estande da Jéssica dominava o centro do pátio, rodeado por uma multidão. Risadas, aplausos e olhares admirados. Os professores aparentavam estar bastante animados com o projeto. Era como assistir um show.
Depois de quase uma hora, chegou a minha vez. Comparado à barraca favorita da feira, cheia de fãs e agitação, meu estande parecia um oásis de silêncio.
Um senhor de sobrancelhas enormes, aparentando mais de sessenta anos, se aproximou e lançou um olhar desconfiado para minha mesa quase vazia, onde repousava apenas a minha bendita caixa.
— E você meu rapaz? Não trouxe nada ou seu projeto é sobre o gato de Schrödinger? — brincou.
— Não, senhor. Na verdade… é uma aplicação prática. — falei timidamente.
Abri minha caixa e lá havia várias etiquetas adesivas brancas com códigos QR em cima.
— O senhor pode por favor me mostrar o seu braço?
O homem estendeu o braço e colei ali uma das etiquetas. Após um minuto de silêncio constrangedor, o adesivo mudou sua cor de branca para âmbar.
Peguei meu celular e escaneei o código na etiqueta.
— Pressão normal, glicose dentro do padrão… Só recomendo pegar mais leve no bacon. — falei enquanto olhava para a tela do celular, ao levantar o rosto vi que todos estavam com expressões de confusão.
Era de se esperar, já que eu não tinha explicado nada.
— Me desculpe, — eu continuei. — Esses sensores absorvem enzimas da pele e fornecem dados em tempo real. A ideia é torná-los acessíveis e integrá-los com sistemas médicos para diagnósticos rápidos e baratos. Especialmente úteis em lugares com poucos recursos.
Todos ficaram pasmos por um momento até que o senhor quebrou o silêncio.
— Como você disse que se chama rapaz?
— James Drumont — respondi baixinho.
— Drumont? — falou um homem bigodudo — Como em Laura e Ricardo Drumont?
— Sim — murmurei ainda mais baixo. Agora que o nome deles tinha sido mencionado, já sabia que as coisas poderiam tomar um rumo diferente.
— É o filho deles.
Respondeu a professora Helena-Shang em um tom seco.
— Aí está! — gritou entusiasmado o senhor sobrancelhudo — Isso só poderia vir da genialidade que apenas os Drumont possuem! Meu rapaz, não é necessário mais nenhuma avaliação. Você com certeza já pode se considerar o vencedor desta feira.
Muitos aplausos estouraram no pátio enquanto recebia alguns elogios com palmadinhas nas costas.
É impressionante como bastou ouvir meu sobrenome para tudo virar. Até um minuto atrás, nenhum dos avaliadores parecia se importar comigo; até mesmo os professores permaneciam calados. Mas isso tinha um motivo — não era à toa que eu era o aluno invisível e recluso da escola.
No começo, todo o corpo docente tentava cair nas minhas graças, claro, tentando chegar até meus pais. Eles tinham uma esperança vã de que, ao se aproximarem de mim, abririam portas para alcançá-los.
Mas, assim que ficou claro que não conseguiriam nada, fui jogado para o canto, como um trampo de pia esquecido no fim do balcão.
Agora, graças a mais um fanático dos meus pais, eu era o garoto prodígio novamente.
Até quis acreditar que, talvez, só dessa vez, aquela fosse minha chance. Que as coisas finalmente estivessem mudando. Mas, lá no fundo… eu sabia. Sabia que estava apenas me enganando.
Em meio a aplausos mudos, minha mente mais uma vez me atacou.
Haha, olha como suas máscaras são postas. Apenas há alguns instantes eles estavam me dando as costas e agora me enchem de tapinhas nos ombros!
Não, eles são apenas ignorantes seguidores das massas. Eu não preciso me incomodar com eles!
Mas eu queria tanto acreditar:
Dessa vez tudo vai ser diferente, tem que ser! — Dizia para mim mesmo, tentando me convencer.
Tomei as rédeas das minhas emoções e acompanhei a delegação para receber meu prêmio.
A cerimônia passou como um borrão. Flashes, cumprimentos, felicitações. E eu ali, tentando entender se tudo aquilo era real.
E quase podia sentir aquela aura pesada que emanava das pessoas, como se esperassem algo mais — algo que poderiam conseguir facilmente através de mim.
Após a cerimônia, voltei para a sala com a medalha e o certificado pesando nas mãos. O ar parecia denso, como se o silêncio ao redor me cobrasse algo que eu nem sabia se podia dar.
David estava sentado na minha mesa, os olhos fixos em mim com uma expressão difícil de decifrar — uma mistura de raiva contida, frustração e algo mais, como uma sombra de dúvida. Ele não falou nada por um longo momento, e eu senti cada segundo daquela mudez pesada.
Finalmente, ele quebrou o silêncio, a voz baixa e carregada:
— Então é assim que você joga, Drumont? Espera o momento certo, e se aproveita do nome dos seus pais para levar tudo.
Não havia só rancor ali, era uma decepção que me atravessava. Tentei responder mas, minha voz falhou:
— David, não é assim… Eu realmente trabalhei e… sabe o projeto…
Ele se levantou devagar, dominando o espaço ao redor com uma presença quase ameaçadora. Seus passos eram lentos, firmes, como quem decide algo irreversível. A luz da sala oscilava com o movimento, como se vacilasse diante da tensão.
— Você acha que só isso basta? Que o nome dos seus pais vai te proteger? — sua voz baixou, carregada de amargura. — Para os outros, você é só um introvertido estranho, mas para mim, é só mais um cara com ego inflado, acreditando que está acima de todos nós, pessoas comuns.
Por um instante, notei seu olhar vacilar, um breve lampejo de insegurança que tentou esconder.
Não! Não era verdade. Pensei.
Mas antes de conseguir protestar ele avançou mais um passo, tão perto que podia sentir o cheiro do suor misturado com raiva.
— Você tem uma chance de ser honesto aqui, Drumont. Devolva isso para quem realmente merece.
Meu coração disparou. Tentei me afastar, mas ele segurou meu braço com força, os dedos me apertando como uma prensa hidráulica.
— Já chega, David! — a voz firme de Jéssica cortou o ar.
Ela apareceu na porta, hesitando por um instante, como se lutasse contra o impulso de intervir e o medo de magoar o namorado.
David virou a cabeça na direção dela, os olhos estreitos, medindo a situação.
— Eu disse: chega. Vai esfriar a cabeça.
— Jess… Ele não merece… — começou, mas ela ergueu a mão, interrompendo.
— Isso basta. Essa decisão não é nossa — sua voz era inabalável. — Se os avaliadores julgaram que eu não merecia, então é o correto. Por favor, saia e vá esfriar a cabeça. Ou eu chamo os professores.
O silêncio se tornou quase palpável. David soltou meu braço com um suspiro áspero, virou-se e saiu, batendo a porta com força.
Jéssica respirou fundo e veio até mim. Seu rosto misturava alívio, preocupação e algo indefinido, talvez um sentimento que não ousava revelar.
— Você está bem?
— Eu… eu realmente não quis usar o nome… — falei, olhando para o chão, sentindo o peso de uma culpa que eu carregava contra minha vontade.
Ela segurou meu ombro com delicadeza.
— Não ligue para ele. Eu sei que você nunca faria algo assim. Você mereceu, James. E isso merece ser comemorado.
— Comemoração? — perguntei, ainda sem erguer o olhar.
Ela sorriu leve, quase como um convite silencioso.
— Seus pais não estão em casa, certo? Que tal a gente fazer algo simples, uma festinha com as meninas?
Ela deu de ombros, com um sorriso leve, sem pressão.
Eu fiquei ali, meio sem jeito, sentindo o rosto esquentar, e respondi, quase sem saber o que falar:
— Tá… claro.
— Então tá — disse ela, com um sorriso tranquilo — À noite.

Quando cheguei em casa, o vazio e a solidão do apartamento me abraçaram como um velho inimigo que nunca se afasta. A medalha e o certificado pesavam nas minhas mãos, mas não era o peso do orgulho — era um fardo invisível, feito de dúvidas e expectativas sufocantes.
Será que eu mereço isso? A pergunta rodava como um sussurro na minha mente, enquanto a voz da ansiedade ecoava, fria e insistente.
Claro que não, afinal só precisaram ouvir o sobrenome. “Drumont”. Isso foi suficiente para entregarem o prêmio. Eu não passava de uma sombra, uma extensão dos meus pais, um nome que abria portas, não uma pessoa.
Mas… não! A ideia, o sensor, a integração com sistemas de saúde… era tudo meu. Simples, acessível, funcional. Não era só sobre genialidade, era sobre ajudar pessoas.
— Não sou a sombra dos meus pais — protestei baixinho, batendo um leve tapa nas bochechas, como se quisesse despertar de um sonho ruim — Sou mais que isso.
Olhei para o relógio; já tinha passado um bom tempo desde que cheguei. Decidi ir ao mercadinho, sem muita noção do que deveria comprar para a festa. Para mim, “festa” ainda era sinônimo de refrigerante, salgadinhos e um silêncio desconfortável.
Mas Jéssica tinha outros planos.
Ela chegou cedo, rodeada de gente animada, risadas que enchiam a sala, bebidas espalhadas, um globo de luz girando e até uma pequena mesa de DJ improvisada. Em poucos minutos, o apartamento imóvel ganhou vida, pulso e cor.
Fui puxado para o meio da sala por algumas garotas que dançavam, e me mexi como uma minhoca desajeitada. Foi ridículo, mas, de algum modo, libertador.
Jéssica sorria, contando histórias da infância com aquela nostalgia gostosa — dos tempos em que nossos pais trabalhavam juntos e a gente ficava à vontade para aprontar todas as travessuras possíveis.
Suas palavras iluminavam o ambiente. Rimos muito e, por um breve momento, senti que talvez não fosse invisível, que ainda havia um lugar para mim naquele mundo.
Mas então, a porta se abriu, e David entrou, a presença dele cortando o ar como um vento frio.
— Jess, a gente precisa conversar — a voz soava dura, carregada de impaciência e um leve traço de embriaguez. — Vai mesmo desistir de tudo por… — a frase morreu na garganta enquanto seus olhos se fixavam em mim — Por esse bostinha?
Eu congelei.
Desistir por mim?
Jéssica tentou intervir com uma voz firme, tentando controlar a situação, mas David estava inquieto, atraindo olhares e cochichos enquanto continuava a se debater.
— Aqui não é lugar para isso — eu disse, tentando manter a voz calma — talvez vocês possam conversar no meu quarto, é mais reservado.
Ela me lançou um olhar hesitante, uma mistura de alívio e dúvida, e disse:
— Obrigada, James. Vamos, David.
Caminhamos pelo corredor até onde a música virou um eco distante, quase um sussurro. Abri a porta e os deixei entrar.
— Espere aqui, James — disse Jéssica, virando-se para mim. — Eu falo com ele primeiro.
Eu concordei. Por mais que eu quisesse ir junto com eles, eles eram um casal e deveriam se resolver sozinhos.
Fiquei na porta, alerta, o corredor envolto em flashes multicoloridos que brincavam pelas paredes graças ao globo de luz. A música desacelerava, cada batida tornando-se mais lenta, quase distorcida.
O tempo parecia suspenso.
Tudo ao meu redor movia-se lentamente, e meus pensamentos aceleravam e ecoavam abafados, como trovões distantes que insistiam em romper o silêncio.
O que você realmente acha que está acontecendo? Essas pessoas nunca gostaram de você, olhe para todas essas máscaras e esses sorrisos falsos!
Dessa vez apenas um único pensamento emergiu em meio ao caos. Frio, cortante. E pela primeira vez, sem contraponto.
Um som abafado chegava até meus ouvidos como um sussurro cortante, uma mistura de palavras interrompidas, vozes quase em segredo.
— Vamos fazer isso… é o me…or momento
Aproximei minha mão da maçaneta, mas a porta se abriu de repente.
David surgiu, me encarando com a expressão fechada. Sem dizer uma palavra, ele me empurrou para o lado, abrindo caminho e dando alguns passos à frente.
Antes de sair, virou-se para olhar para trás, seus olhos percorrendo a porta e depois fixando-se em mim, como se guardasse um segredo pesado. O olhar alternava entre desprezo e raiva.
Sem aviso, murmurou algo sobre “ir ao banheiro” para um grupo de convidados que o observava à distância. Seus passos pesados ecoaram pelo corredor até desaparecer na multidão.
Assim que ele sumiu, um som abafado chegou até meus ouvidos — um gemido baixo, seguido de um choro contido que apertou meu peito.
Empurrei a porta entreaberta devagar, com os músculos tensos, o peito preso num silêncio ansioso. O quarto estava quase escuro, iluminado apenas por um dos abajures do canto — sua luz amarelada criava sombras alongadas nas paredes, deformando tudo ao redor.
E então, eu vi.
Jéssica estava deitada na cama, seminua, envolta apenas num lençol desalinhado. O tecido mal cobria os ombros, e o cabelo negro escorria como tinta sobre o travesseiro.
Mas o que congelou meu corpo não foi sua pele à mostra — foi o modo como ela me olhava.
Não havia surpresa. Nem medo. Nem vergonha.
Apenas… uma serenidade impossível, como se ela estivesse exatamente onde queria estar, vendo exatamente o que esperava ver. Era quase como um convite frio demais para ser genuíno.
— O que… o que tá acontecendo aqui? — minha voz soou trêmula, pequena demais para aquele cenário, como se tudo estivesse sendo filmado, e eu fosse o único a não entender o roteiro.
De repente, senti um movimento atrás de mim. David retornou silenciosamente, quase como uma sombra, os passos abafados contra o carpete, surgindo sem aviso. O soco veio com a precisão e força de um predador, atingindo meu estômago com brutalidade.
Senti meu mundo explodir em ruído e dor, não só física, mas como um vazio rasgando meu peito. — era como se arrancassem algo dentro de mim com as mãos nuas.
Caí de joelhos. O quarto girava, as luzes dançavam entre borrões vermelhos.
Tentei resistir. Minhas mãos buscaram apoio na parede, os músculos tremendo, o ar faltando enquanto lutava para manter o equilíbrio e a consciência.
O peso do golpe me esmagou, mas eu ainda queria me levantar, provar que não seria vencido tão facilmente. David trancou a porta e encostou-se à cômoda, cruzando os braços como se tudo aquilo fosse só mais uma terça-feira.
— Engraçado… — começou ele, a voz fria e calculista, um sorriso torto se formando — nunca achei que você fosse tão burro. Uma noite só, uma chancezinha de sair da sombra dos seus pais… e pronto. Caiu feito patinho.
— Eu não… — Tentei me erguer, a voz falhando, mas ele me empurrou de volta ao chão com a bota, esmagando qualquer tentativa de reação.
— Cala a boca. Você estava tão desesperado por atenção que qualquer coisa servia.
Jéssica se sentou na cama, arrastando o lençol com os braços. Estava indiferente. Bela como uma estátua. Mortal como uma lâmina embebida em perfume.
— Lembra de quando éramos pequenos, James? — ela perguntou, com a voz carregada de veneno, cortando o ar. — Claro que não, né? Você só se lembra das partes que lhe são convenientes para montar seu palquinho de vitimismo.
— Eu… não sei do que você tá falando. — Tentei rebater, ganhando um fio de coragem, tentando agarrar o pouco que me restava de dignidade.
Ela suspirou, inclinando a cabeça com um falso ar de tristeza que me fazia querer vomitar.
— Um dia, meus pais chegaram em casa com os olhos brilhando. Tinham feito uma descoberta, uma ideia que podia mudar tudo. E confiaram nos seus pais para ajudá-los a endossar o artigo.
Fez uma pausa, observando meu rosto que se contorcia de dor, se deleitando com cada contorção.
— Foi a última vez que eu os vi sorrir de verdade.
David se levantou, andando pelo quarto com passos lentos, como um leão avaliando sua presa.
— Depois vieram os advogados. A “revisão de patentes”. Os acordos. E os prêmios. Ah, os malditos prêmios.—Finalizou Jéssica.
Ele parou diante das luvas de boxe penduradas como relíquias esquecidas. Passou os dedos por elas com um sorriso nostálgico e cruel.
— Nossa! Você lembra disso aqui? Me falaram que você era bom. Realmente era. Se não me engano, estava naquele ginásio há que? Três anos? Aposto que se divertiu lá, hein? Pelo menos até eu entrar e te espancar durante os sparrings. Hahaha.
Ele devolveu as luvas ao lugar e continuou, a voz rasteira como uma cobra.
— Depois você sumiu. Como sempre. Um covarde que nunca lutou por nada, só esperava os louros caírem no colo como um garotinho mimado.
— Não é verdade! — disse, a raiva crescendo, tentando me impor, ganhar espaço — Eu lutei. Tentei muito.
David virou-se para mim, o olhar brilhando com desprezo.
— Você nunca foi forte, James. Sua força é emprestada, falsa, provida de um nome que só traz desgraça.
Jéssica levantou-se. A luz do globo girou sobre seu rosto, lançando metade dele na escuridão.
— Sabe o que é mais triste? — falou, a voz baixa, cortante — Eu gostava de você. Lá no começo. Quando os malditos dos seus pais ainda não tinham fodido com a minha família.
Seus olhos marejaram — ou fingiram. E não fazia mais diferença.
— Sabe, quando te reencontrei realmente tentei não te odiar. Mas, o seu nome… o seu maldito nome…
Ela caminhava em círculos curtos, cada gesto carregado de raiva, ódio transbordando dela.
— Nós perdemos tudo por causa dele. Escola. Amigos. Roupas. Dignidade.
— Vocês nunca entenderam… — comecei a falar, tentando escapar daquela armadilha, sentindo a garganta fechar — Eu…
— Não tente se justificar! — ela cortou, com um sorriso amargo — Sempre que meus pais tentavam se reerguer, eram novamente jogados na lama por conta desse nome maldito que você carrega.
Ela parou diante de mim, agachando-se.
— Você não sabia, claro. Nunca soube de nada. Sempre com aquela cara de órfão emocional, afogado com pena de si mesmo. Mas isso me dava mais raiva ainda. Ter que dividir meu espaço como vítima com alguém que nem você. Um covarde que nunca enfrentou nada, só aceitou o destino.
Sorriu. Um sorriso vazio, olhos em chamas.
— Mas agora você vai servir pra alguma coisa. — Sua voz baixou, quase um sussurro envenenado — Vão olhar pra mim de novo. Vão ouvir minha voz. Eu vou ter controle. E terei minha vingança.
— Por mais que eu não consiga os seus pais… — continuou — pelo menos o nome deles vai ficar sujo.
David se agachou perto de mim, a voz sarcástica:
— E sabe o melhor? Ninguém vai duvidar. Você garantiu que não teria amigos sendo um recluso idiota. As provas estão espalhadas, e todo mundo adora a Jess. Em quem vão acreditar?
Ele bateu palmas na minha bochecha, com uma gentileza falsa.
— Tá na hora do show, parceiro.
Ele se levantou, destrancou a porta, olhando por cima do ombro:
— James. A culpa disso tudo é só sua. Você deveria ter ficado na sua prisão invisível, e agora vai passar o resto dos seus dias numa de concreto.
Jéssica me encarava com um sorriso satisfeito mas, logo em seguida foi se desfazendo, substituído por um rosto desesperado, quase humano.
O choro começou, alto, histérico, mecânico.
A música cessou, às vozes no corredor ganharam volume.
Tentei me levantar, mas meu corpo traiu minha vontade.
— Idiota, ISSO É O QUE VOCÊ MERECE! — ela gritou, num tom tão convincente que me arrepiou a espinha. — Eu disse não! EU DISSE NÃO!
A porta foi escancarada, revelando a luz do corredor e um grupo de rostos curiosos e chocados.
Ali estava eu. Frágil, trêmulo, respirando com dificuldade, engolindo uma mistura de medo e raiva.
Jéssica, encolhida na cama, olhos molhados, roupa desalinhada.
David, firme entre nós, braços cruzados, com um olhar protetor — o herói da história que ele próprio arquitetou.
— Ele tentou me forçar… eu pedi pra ele sair… se não fosse o David, eu não sei… — as palavras se quebraram num choro devastador.
O palco estava montado.
E meu mundo, despedaçado.
— Você é um lixo, Drumont! Sempre foi e sempre será um miserável covarde! — gritou alguém na multidão.
Antes que eu pudesse reagir, um soco violento acertou meu queixo. O mundo girou, o gosto de sangue explodiu na minha boca e fui novamente ao chão.
— Eu sempre achei que um dia você cruzaria essa linha! — disse um rapaz ruivo em meio aos demais..
— Esse tipo de gente vive escondendo quem é de verdade! — murmurou outro.
— Monstro… nojento… — gritou outra garota, voz carregada de ódio.
As vozes se empilhavam, um coro de julgamento e desprezo. Tentei falar, mas só consegui tossir sangue. Minhas pernas fraquejaram. Não podia ser real.
Um salto atingiu meu ombro, outro chute explodiu contra minha barriga. Depois, o rosto. Encolhi-me, protegendo a cabeça.
As luzes piscavam, estroboscópios cruelmente iluminando cada rosto furioso, olhos vazios, bocas deformadas em gritos surdos.
Era um pesadelo. E eu estava acordado.
No meio do caos, entre socos e chutes, vi Jéssica. Ela me observava de cima. Calma. Serena. Quase… satisfeita. Projetava um sorriso cruel. Sádico.
Ela estava se deliciando.
Quase conseguia ouvir seus pensamentos:
“O nome dos Drumont será jogado na lama que é o lugar dele”
Não era justo, eu não fiz nada de errado, não sou responsável pelos pecados dos meus pais.
Um pico de raiva ascendeu dentro de mim, empurrei as pernas de um dos agressores, fazendo-o cair. Me arrastei, tropeçando até a sacada e agarrei a primeira coisa que vi — uma cadeira de plástico que usei como escudo.
— P-por favor! Me escutem! Eu não fiz nada! Eu… eu só…
— Seu maldito! — gritou David, apontando para Jéssica, aos prantos. — Olhem o estado da Jess! Você ainda tem coragem de negar?
— Alguém duvida da culpa dele? — sua voz ecoou, firme, dominando o lugar. — Não, claro que não!
Eu estava encurralado.
Todas aquelas pessoas me encarando, enquanto eu, um animal assustado, buscava desesperadamente uma saída para aquele inferno.
David abriu caminho entre os agressores e avançou como um touro acabando facilmente com meu pífio escudo de plástico. Ele desferiu outro soco no meu estômago. A dor explodiu, e me dobrei em dois.
Ele se inclinou, sussurrando no meu ouvido:
— Veja como todos te julgam, você é só mais um pedaço de lixo igual aos seus pais.
Não!. Aquilo acendeu algo dentro de mim, já estava farto. Eu não vou mais pagar pelo erro dos outros.
Minha visão escureceu. As vozes se apagaram. Só restava o latejar do sangue nas têmporas e a fúria — quente, pulsante, ardente.
Dei uma cabeçada no rosto dele e o agarrei com as duas mãos, empurrando-o contra o corrimão da sacada. Ele bateu as costas com força.
E então, libertei minha raiva em uma sequência feroz de socos.
Jab, jab, um uppercut e por fim um direto de direita.
A dor crescia nos dedos, latejava a cada golpe, mas eu não parava.
Isso! Isso.. Um prazer selvagem invadiu minha mente a cada impacto.
Já não sentia a dor nas mãos — só o impacto percorrendo meu braço. E o sangue quente do meu inimigo.
Despeje todo seu ódio! Ele merece! Todos merecem!Vamos matar todos. Uma voz ecoava dentro da minha cabeça. Metálica, cortante e cheia de raiva.
Não… pare… você é melhor que isso! Outra voz, mais calma, serena, tentava me ancorar.
Elas lutavam dentro da minha cabeça, ressoando como ecos divergentes.
Meus punhos pararam.
David sorriu, mesmo machucado ainda tinha forças. Agarrou meu casaco, girou meu corpo e me jogou contra a grade. Forte demais.
Uma expressão de verdadeira surpresa tomou seu rosto quando a estrutura cedeu parcialmente e, num segundo, eu estava pendurado do lado de fora.
Meus dedos agarraram-se por instinto ao metal, mas o sangue entre meus dedos me fez escorregar lentamente.
— Ajuda! — alguém gritou do lado de dentro. — Pega uma corda, um lençol, qualquer coisa!
— Ele vai cair! Rápido! — outra voz aumentou o desespero.
Nada chegava. Meus braços tremiam.
Você não vai conseguir. Aceite seu destino. Gritou a voz raivosa.
No meio do turbilhão, as vozes na minha cabeça pareciam ter vontade própria.
Não! Não se deixe levar pelo desespero. Mesmo quando tudo parece perdido, há sempre uma saída. Não se renda!
Minhas lágrimas misturavam-se ao suor e ao sangue no meu rosto. Mas afinal, por que eu ainda estava me apegando a vida?
Ninguém vai sentir minha falta. Jéssica destruiu o que restava da minha vida social, ninguém ali ligaria se eu caísse não é?.
Meus dedos falharam. A queda foi lenta — uma descida que parecia desafiar o tempo, como se o mundo esperasse, suspenso, pelo meu fim.
A gravidade deixou de ser força e se tornou um lamento profundo, um sussurro triste que ecoava no silêncio do meu corpo que despencava.
Enquanto meu eu caía, minha mente se desprendia — flutuando distante, entre fragmentos de memórias, desejos esquecidos e sonhos desfeitos.
As luzes da festa diminuíram, virando pequenos pontos distantes, estrelas frias que não podiam me alcançar. As vozes sumiram, como se o universo tivesse apertado um botão de mudo no caos ao meu redor.
O vento da noite, frio e suave, acariciou meu rosto, uma despedida silenciosa — não um adeus, mas um sussurro tênue de existência.
A ansiedade que sempre rugia dentro de mim, aquele monstro que me consumia, finalmente cessou — um silêncio absoluto, quase sagrado.
Por um instante que parecia eterno, eu não senti medo, nem dor, nem tristeza.
E então, uma voz, sutil e gentil sussurrou no meu ouvido, rompendo o vazio dentro de mim — a voz que nunca me abandonou:
“Não é o fim, James. Nunca foi. Mesmo quando tudo parece perdido, há sempre uma saída. Ainda existe um caminho, mesmo que você não possa vê-lo agora.”
Eu aceitei — aceitei que não havia para onde correr, que as sombras que me cercavam eram densas demais.
Mas naquele instante final, antes que o mundo escurecesse por completo, uma fagulha tênue de resistência ardeu dentro do meu peito.

Luz.
Calor.
Quando voltei a mim, estava de novo naquele lugar. As colinas douradas sob o sol, o campo coberto por flores, e o velho carvalho solitário no topo da encosta. O som da brisa acariciava os galhos, e tudo parecia… em paz.
E lá estava ela. A moça.
Mas, algo parecia diferente: sua pele estava pálida, longas madeixas negras dançando ao vento. E um vestido leve que parecia feito de luz.
Ela me olhava com ternura. Não dizia nada, mas seus olhos falavam tudo.
Me aproximei. Seus traços eram suaves, serenos. Havia um amor silencioso em sua presença. Ela estendeu a mão.
— Está tudo bem agora — disse, e sua voz era como uma canção antiga, doce e aconchegante — vamos voltar para casa juntos.
Dei um passo. Outro.
Mas minhas pernas pesavam. Como se presas em uma gosma. Quando olhei pra baixo, meus pés estavam afundando em uma areia escura.
A cada segundo, eu era tragado por ela.
Tentei gritar, mas minha voz não saía. Estiquei a mão para a moça, mas ela estava longe demais.
O mundo desbotou. A luz se apagou.
E novamente tudo virou trevas.