Laços do Luar - Um novo mundo - Capítulo 2

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Duquesa

— Todos os preparativos para receber Sua Majestade, Aurora, estão prontos, Vossa Alteza. — disse um senhor de rosto fino e bigode bem aparado, que exalava a elegância impessoal de um mordomo treinado.

Seu traje era impecável: um blazer preto, gravata borboleta e luvas brancas que pareciam ter saído diretamente de um manual sobre etiqueta nobre.

 Elizabeth acenou levemente com a cabeça.

— Obrigada, Kírkart — Ela respondeu com uma voz suave, mas carregada de autoridade. Seus olhos observavam o mordomo com um brilho distante, quase perdido em pensamentos.

Sua franja lilás, cortada com precisão, encobria parcialmente o pequeno chifre arredondado em sua testa.

— Diga aos demais servos que cumpram todos os desejos de Sua Majestade, claro, desde que não infrinjam o que resta da privacidade da Princesa — continuou Elizabeth, com uma leve ênfase na palavra privacidade.

— Entendido, Vossa Alteza! — O mordomo fez uma reverência, com a suavidade calculada de quem estava familiarizado com o papel que desempenhava, antes de se retirar com uma leveza no passo.

Já é a quarta vez esse mês que ela nos visita. Até quando a Rainha pretende forçar isso?

Pensou a garota enquanto observava a comitiva luxuosa que se aproximava da entrada do palácio.

A carruagem era escoltada por uma dúzia de cavaleiros, todos vestidos com uniformes cerimoniais de cores vibrantes e detalhes dourados.

As jaquetas de colarinho alto, ajustadas ao corpo, reluziam sob o sol, adornadas por botões polidos e insígnias bordadas à mão. As calças escuras contrastavam com as botas altas de couro lustrado, os elmos com plumas vermelhas completavam o visual imponente.

Assim que a comitiva parou diante das escadarias, dois cavaleiros desmontaram com precisão coreografada e, com uma leve reverência, abriram a porta da carruagem para que a Rainha pudesse desembarcar.

Aurora desceu com elegância e sem pressa, como quem sabia que o tempo lhe pertencia. Cada passo era contido e gracioso, o próprio chão aguardando em silêncio. Seus cabelos, longos até a cintura, formavam ondas sedosas em tons que lembravam o nascer do dia — uma mistura sutil de dourado, azul e violeta.

O vestido branco, justo e de tecido leve, parecia costurado com luz. Fluía com ela, não atrás dela. Seus olhos, azuis e gelados como safiras polidas, brilhavam com o mesmo gelo que pareciam lançar sobre tudo ao redor.

— Esse lugar continua deprimente como sempre, Duquesa Elizabeth — disse a rainha, sua voz era o fio de uma lâmina, cortando o ar à medida em que os olhos percorriam o espaço com um desdém visível. — Quem sabe uma nova administração não seria o remédio? — Ela finalizou com um sorriso cruel e sarcástico.

A duquesa não se deixou abalar. Com um sorriso afiado, ela respondeu, imperturbável:

— Talvez, se Vossa Majestade nos desse um pouco mais de espaço, a Tapeçaria encontrasse tempo para realinhar seus fios.

— E quem sabe até desse tempo de planejar uma nova ala, só para Vossa Alteza desperdiçar mais um dia esperando ser recebida pela irmã… que, como bem sabe, não deseja vê-la.

Dois guardas imediatamente ameaçaram sacar suas espadas, mas Aurora os deteve com um aceno de mão.

— Esse tipo de desaforo seria o suficiente para que a cabeça de uma protegida rolasse sem cerimônia, não acha, duquesinha?

A rainha cerrou os dentes e disse baixinho enfatizando cada palavra

— Assim como aquele imundo que maculou minha irmã, um dia você também encontrará seu fim.

De súbito a fúria tomou conta da Duquesa. Sua energia transbordava de maneira ameaçadora enquanto encarava Aurora, que por sua vez, a olhava com um ar de desprezo e arrogância. Os guardas sacaram suas espadas em resposta à aura hostil.

Elizabeth firmou o olhar, recuou a energia e manteve a voz contida, quase cerimonial:

— Os fios que desafiam a Tapeçaria deixam marcas eternas. E a senhora já bordou demais nas costas alheias.

Aurora cerrou os olhos, mas não respondeu. A expressão não era apenas um provérbio — era um aviso.

Foi quando uma presença cortou o ar.

Luna surgiu das sombras das colunas do saguão, seus olhos fixos em Aurora com uma frieza inabalável. Era como se ela fosse uma tempestade que ainda não havia se anunciado, mas sua força era palpável. A atmosfera, já carregada de tensão, ficou mais densa.

Os guardas, que antes estavam prontos para intervir, congelaram. Instintivamente, abaixaram as espadas e se curvaram, não apenas em respeito, mas por um medo silencioso de sua força.

Ela caminhou até Elizabeth, um silêncio absoluto envolvendo as duas, e com uma suavidade inesperada, colocou a mão sobre o ombro da Duquesa. Um gesto de proteção, de cuidado, mas também de controle. “Não se preocupe”, ela parecia dizer, mesmo sem palavras.

O simples ato de se aproximar de sua protegida fez com que os guardas tomassem um passo atrás.

— Liz, não caia nas provocações dela. Não puxe o fio que ela estende  — disse com uma firmeza suave, quase sussurrada. — É um nó criado apenas para enredar e punir.  Seu único desejo é um motivo justificado para lhe castigar conforme seus caprichos.

Luna então ergueu o olhar para Aurora. Não havia raiva. Nem súplica. Apenas frieza e ausência.

— Você sabe que eu não quero que me visite. E se veio até aqui para me levar de volta à capital… a resposta continua sendo a mesma.

— Você prefere viver aqui no meio desses camponeses e mestiços como uma plebeia?

 A voz de Aurora, antes arrogante e soberana, agora perdeu a imponência e assumiu um tom melancólico e doce, quase como se ela estivesse se esforçando demais para manter uma fachada de controle.

Era uma doçura forçada, infantil, como se estivesse falando com alguém que não compreendia as complexidades do poder que ela representava.

— Vamos, irmãzinha… já deu dessa birra. Volte comigo. Você pertence à capital.

— Birra? — O tom de Luna cortou o ar com a precisão de um bisturi.

Sua postura permaneceu inabalável, mas havia algo em seu olhar — algo gelado, mas explosivo — que traía sua imagem de serenidade. lhos diziam mais do que palavras, e aqueles que os observavam sabiam: a verdadeira tempestade estava prestes a se soltar, mesmo que Luna fosse, por enquanto, a calmaria antes do caos.

— Depois de você ter se colocado entre mim e o homem que eu amava com todo o meu ser? — continuou, a voz agora firme ganhava volume e fúria.  — Depois de tentar nos separar com mentiras, chantagens e jogos de poder? De fingir que se importava enquanto tramava pelas minhas costas, sem o menor escrúpulo? E no fim… você realmente achou que eu não perceberia sua verdadeira felicidade quando ele partiu, como se finalmente tivesse se livrado de um peso… ou de uma ameaça?

Ela respirou fundo, e por um breve instante sua aura escapou. Foi como um vento cortante que atravessou o pátio frontal. A raiva estava lá, pulsando logo abaixo da superfície. Era como observar o mar em um dia calmo e perceber que, bem lá no fundo, há uma tempestade se formando.

Liz disfarçadamente enxugou uma lágrima que escapava. Compartilhava do sentimento de Luna — afinal, era de seu irmão que ela falava.

 Então, após uma breve pausa que pareceu uma eternidade, Luna fez o impossível: ela recuou. Recolheu a fúria com a precisão de quem fecha uma porta com o maior cuidado, sem trancar, mas também sem deixar que ninguém mais a abrisse.

Luna deu um passo à frente, encarando a irmã sem piscar.

— Depois de tudo isso, você tem coragem de chamar meu desprezo por você de birra?

Aurora, sentindo o controle escorregar, deixou cair a máscara.

— Eu ainda sou sua rainha! — sua voz soou alta demais, dissonante — Você não pode me impedir de vir aqui! E não se esqueça… eu posso destituir sua protegida quando bem entender!

A princesa parou de súbito. O desprezo em seu olhar queimava com uma intensidade silenciosa diante das ameaças da irmã.

— Você não pode ameaçar Luna dessa maneira — disse Elizabeth, encarando Aurora. — Esse tipo de abus…

— Liz, querida — Luna interrompeu, com uma voz doce que escondia tensão. — Não se preocupe. Eu mesma falarei com minha irmã.

Elizabeth, porém, via nos olhos dela o esforço para manter as aparências intactas.

Luna seguiu para o interior do palácio, seguida por Aurora e seis de seus guardas.

— Continue me desafiando, e talvez não seja você quem pague o preço, duquesa — sussurrou Aurora ao passar.

O sangue de Elizabeth gelou. A relação entre elas sempre fora tensa, marcada por olhares cortantes e palavras venenosas.

Depois da morte do seu irmão — que Luna amava profundamente —, a princesa passou a cuidar de Liz como se fosse da família. Ver o amor entre eles sempre aquecia seu coração, e a perda deixou uma cicatriz em ambas.

A duquesa havia prometido: nunca deixaria o rancor da rainha tocar a princesa. Ela protegeria sua mentora, sua irmã de coração, com tudo que tivesse.

Aos poucos, Elizabeth foi recuperando sua calma. Afinal, não havia nada que ela pudesse fazer agora. Infelizmente não era a primeira vez que esse tipo de situação acontecia.

— Kírkart — Ela bateu as mãos e logo em seguida, o mordomo apareceu ao seu lado — Por favor, peça para prepararem meus materiais de estudo no jardim Oeste.

A duquesa caminhou pelos jardins, melancólica, com as palavras da Rainha ainda ecoando em sua mente.

Quem essa serpente pensa que é para nos ameaçar assim? Ela realmente acha que pode forçar o Tear a se curvar sem antes desfazer os nós que ela mesma criou no passado? — O simples lembrar do ocorrido fazia o sangue de Liz ferver. Suas mãos se cerraram com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.

Ela não pode tratar Luna assim. Ser rainha não é espalhar medo como se fosse um bordado de espinhos… Se ao menos Seradin ainda estivesse aqui…

Por um segundo, desejou ouvir a voz calma do irmão, como nos velhos dias…

 Minha pequena tulipa, nunca deixe que o ódio nuble sua mente, sua visão deve ser sempre limpa e clara. Não caia nas armadilhas da ira, nem no falso poder da raiva, apenas seu coração e a vontade de proteger quem você ama são o verdadeiro poder.

Lembrando das palavras de Seradin, Elizabeth foi se acalmando e retornando a serenidade habitual. Ela chegou à mesa de treino e viu todos os tipos de materiais para aperfeiçoar suas habilidades.

A duquesa lançou um olhar rápido à torre oeste do palácio, onde os aposentos de Luna se erguiam, altos e imponentes.

— Espero que esteja tudo bem com ela — disse baixinho.

As próximas duas horas se passaram em um ritmo meticuloso, as lâminas da esgrima cortavam o ar com precisão, cada movimento era executado com a determinação de quem tem um único objetivo: aperfeiçoar-se.

Entre os passos rápidos e os golpes, a duquesa treinava também suas habilidades arcanas, concentrando sua energia nos gestos precisos que invocavam pequenas faíscas de luz. Cada movimento exigia uma calma controlada, uma serenidade absoluta, mas algo dentro dela ainda se agitava.

Ao parar para descansar, sentiu uma estranha vibração no ar. Seus olhos se ergueram lentamente, seguindo a direção do bosque próximo ao jardim. Algo ali parecia fora do lugar. Uma vibração invisível, mas palpável.

Elizabeth se aproximou da mesa de treino com um olhar focado, pegando em suas mãos um item peculiar. Era um retângulo de aproximadamente quinze centímetros, com um furo circular no centro. Com uma precisão quase automática, ela concentrou sua energia sobre o objeto, e logo uma camada de luz etérea se formou no centro, como uma lente viva, pulsando com a energia de seu próprio ser.

Ela apontou o artefato para o topo das árvores, e seus olhos se fixaram na visão que o instrumento revelou: uma fenda no céu, tão sutil que só poderia ser percebida com a ajuda da lente.

Era como se o tecido do próprio céu estivesse sendo rasgado por mãos invisíveis, com fios de luz quebrados pendendo dos lados, deixando um rastro de escuridão e vazio atrás de si. A fenda parecia pulsar, como uma ferida no universo, esperando ser explorada.

De repente, um vulto rasgou o céu por entre a fenda, despencando sobre as árvores como um meteoro silencioso.

Os galhos estalaram alto, quebrando-se em sequência com sons secos e violentos. Mesmo à distância, Liz ouviu tudo.

Seu corpo reagiu antes da mente. Um aperto repentino tomou seu peito, um instinto ansioso que anulou qualquer hesitação. Disparou em direção à mata. Os arbustos cortavam suas roupas e arranhavam a pele, mas nada disso importava — não diante da urgência que a dominava.

Ao chegar no local da fenda, Elizabeth avistou em meio aos galhos quebrados, o corpo de um jovem amontoado. Ele estava preso, sua figura desfigurada pelas sombras das árvores, com o rosto marcado por manchas secas de sangue.

As roupas estavam em pedaços, rasgadas e amassadas, como se tivessem tentado agarrá-lo. Seu corpo, marcado por hematomas e ferimentos variados, exibia sinais claros de uma surra implacável.

Elizabeth parou por um instante, o coração apertando no peito ao ver aquele quadro tão sombrio. O rapaz não parecia pertencer a nenhuma das três raças e talvez nem fosse um mestiço.  Mas havia algo nele… algo que fazia sua alma se alegrar e chorar.

— Ham… — o rapaz gemeu de dor baixinho, Aquilo a fez sair de seu devaneio e entrar em total estado de alerta novamente.

Isso é sério! preciso levá-lo daqui o mais rápido possível… Essas feridas…

— Algo errado, Vossa Alteza?

Dentre os arbustos surgiram dois homens de pele avermelhada, portando arcos e usando roupas simples. Eles carregavam alguns coelhos amarrados pelos pés em suas cinturas, eram os caçadores do palácio. Também viram o rapaz machucado.

— Pela deusa… o que houve aqui? — perguntou um dos caçadores, arregalando os olhos.

Elizabeth não perdeu tempo. Seus olhos estavam fixos no rapaz, e a urgência em sua voz ecoou com força:

— Me ajudem a tirar ele daqui, agora! — ordenou Liz — Não temos tempo a perder. Ele precisa de cuidados imediatos.

Os homens agiram rápido. Um deles se aproximou cuidadosamente e, com a ajuda do outro, desprendeu o garoto dos galhos. Apesar da delicadeza, ele soltou outro gemido fraco, quase inaudível.

— Um de vocês, corra para o palácio e mande preparar uma cama e suprimentos médicos. Chame o doutor e o mande se preparar, digam que é uma emergência.

O caçador assentiu e saiu em disparada pelo mato. O outro ajeitou o garoto inconsciente sobre os ombros e começou a seguir Liz de volta.

Enquanto atravessavam o bosque, a Duquesa lançou um olhar rápido à lateral. Um vulto se escondeu atrás das árvores. Um criado… com as cores da comitiva de Aurora.

— Droga! — amaldiçoou.

Chegando ao palácio, todos os preparativos já tinham sido feitos. O médico e seus assistentes começaram a trabalhar de imediato. Se a duquesa tivesse demorado mais uma hora, provavelmente o rapaz não resistiria.

— Vossa Alteza — disse o doutor, limpando as mãos com um pano e olhando com uma expressão que mesclava ceticismo e surpresa — o rapaz está fora de perigo, mas devo informá-la: nunca encontrei um jovem como ele. Não possui nenhuma das características das raças puras… ao que tudo indica, é um mestiço, mas de um tipo diferente. Algo… único.

 Elizabeth revirou os olhos, a frustração evidente em seu rosto. A maneira como o médico falou, como se o rapaz fosse apenas um objeto raro para ser analisado, a irritava. Tratar mestiços como meros produtos ou curiosidades era algo com que ela detestava.

Infelizmente essa prática era comum, especialmente entre os Lanianos. Para eles, os mestiços eram peças descartáveis, úteis apenas como mão de obra ou em guerras.

— Muito bem, senhor Tupin. Já que o garoto está fora de perigo, seus serviços não são mais necessários — Liz fez um gesto com a mão para que o doutor se retirasse.

— Doutor! Vossa Alteza! — Uma jovem garota com roupas de enfermeira correu na direção dos dois, ofegante. — O paciente acordou!

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