Laços do Luar - Um novo mundo - Capítulo 3
Visões
Eu estava leve como uma pluma, flutuando em meio à escuridão. Quando olhei para minhas mãos, percebi algo estranho: eu brilhava. Era quase translúcido, como se fosse feito de névoa e luz.
Era isso.
Eu, com certeza, estava morto.
Flashes dos últimos momentos antes da queda surgiam em minha mente como um rolo de filme.
O plano sujo daqueles dois. A armadilha nojenta que me empurrou ao desespero. A reação imediata e cega das pessoas. Ninguém tentou entender. Ninguém quis ouvir. Tudo por um motivo ridículo. Aquilo me enchia de raiva.
Logo, as trevas ao meu redor começaram a se decompor, dando lugar para um cenário diferente.
Eu estava em meio a um grande campo de trigo, as espigas douradas dançavam ao vento, roçando umas nas outras e criando uma melodia suave e ritmada. Ao longe, uma garotinha corria em minha direção alegremente, como se não me visse há muito tempo.
De repente, as imagens tremeram como um canal mal sintonizado. Aos poucos, uma nova cena foi clareando, revelando um grande emaranhado de linhas.
Uma vasta estrada de fios multicoloridos se estendia até a vastidão do horizonte. Diversos caminhos e interseções variadas se estendiam dela como uma miríade de galhos.
Apesar de ser constituída de fios, a estrada era firme como rocha.
De tempos em tempos, ventos cortantes me atingiam de todas as direções, trazendo sussurros que pareciam vir do nada.
Às vezes, era uma voz aguda e surpresa de uma garota cochichou em meu ouvido.
— Arcanianos? O que você quer dizer com isso?
— Os fios que desafiam o Tear deixam marcas eternas.
Em seguida, surgia um coro estranho — vozes ritmadas, robóticas, presas em um transe antigo:
— Um coração cheio de amor foi corrompido pelo rancor.
Depois, um homem. Rígido. Formal. Sua voz era firme, como a de um soldado declamando seu epitáfio:
— Pode me chamar de Decius Agripa, ex-legionário… Ou, talvez, eu tenha deixado de ser há muito tempo.
E novamente o coro em transe:
— O sacrifício deve voltar e no lago da deusa se banhar.
A voz da garota retornava, mais confusa, mais desesperada:
— Meu irmão…? Eu tenho um irmão?!
E o coro continuava, inabalável:
— Duas metades devem se entender para que a deusa possa, enfim, se conter.
— Dentro da tapeçaria… todos os caminhos são os corretos.
E lembre-se, viajante — sussurrou uma voz feminina, quase maternal — A Tapeçaria não teme o silêncio, pois nele germinam os sonhos.
A frase se desenhou em minha mente como se tivesse sido costurada com luz.
Tapeçaria? Silêncio? Que diabos está acontecendo? — pensei, sentindo a realidade se diluir como névoa.
A imagem à minha frente mais uma vez tremeluziu, rachaduras deslizavam por todas as partes criando uma gigantesca teia que por fim se despedaçou me jogando mais uma vez na escuridão.
Uma sensação de queda livre percorreu meu corpo, logo um brilho intenso foi se aproximando, pouco a pouco e uma nova imagem foi tomando foco.
Me vi em uma mesa cirúrgica rústica, cercado por médicos de aparência estranha. Um chifre se destacava entre a touca de um deles, o outro tinha orelhas pontudas com a pele um pouco alaranjada, ambos eram incrivelmente ágeis.
O médico chifrudo vez ou outra murmurava algumas palavras e alguns objetos flutuavam até a mão dele, enquanto outros itens trabalhavam sozinhos para estabilizar meu corpo.
Num canto, uma linda garota acompanhava todo o procedimento, apreensiva. Ela tinha o cabelo lilás, que descia até a cintura, os olhos eram violeta e a pele alva. Além disso, possuía uma grande mecha roxa na franja que era separada ao meio por um pequeno chifre de ponta arredondada.
De repente, vi o cenário ao redor começar a se dissipar aos poucos, para em seguida formar um novo local.
Naquele momento me vi em um lugar totalmente diferente de tudo que já tinha visto. O céu noturno estava banhado por uma cor alaranjada e uma fina linha de fumaça subia por trás de uma pequena colina à minha frente.
Ao me aproximar do cume, pude ouvir vozes aterrorizadas e o crepitar das chamas. Conseguia ver claramente uma pequenina cidade em meio às chamas, uma aura nefasta rodeava um exército estranho em marcha. Os soldados em armaduras completas, portavam lanças, espadas e escudos.
Também haviam muitos gritos e lamentos misturados ao som da marcha ecoando pelas ruas.
No alto de outra colina, um ser se destacava em meio àquele caos.
Um calafrio cortou minha espinha como lâmina. Meus músculos se enrijeceram — não por escolha, mas por puro terror. A presença diante de mim era… errada. Imensa. Avassaladora.
O sujeito estava envolto por uma espiral de fumaça negra — espessa, viva, pulsante. Era como se a própria escuridão o protegesse.
De dentro daquela névoa, duas órbitas incandescentes ardiam como brasas — vermelhas, famintas, cheias de ódio — e entre elas, um chifre escarlate emergia do elmo, como uma lança cravada no inferno.
Ele não falava — bramia ordens. Sua voz era um trovão distorcido, comandando destruição com autoridade absoluta. Seus soldados, como marionetes cegas, massacravam tudo sem distinção — civis, guerreiros, nada importava.
Foi quando ele me viu.
Não me olhou. Me viu.
E naquele instante, entendi o que era o medo puro.
A distância entre nós desapareceu — ele não caminhou, mas sim rasgou o espaço, emergindo das próprias sombras como um pesadelo encarnado.
As trevas à sua volta se condensaram e moldaram-se, revelando uma armadura negra, sólida como pecado.
Sua mão — uma manopla de obsidiana com bordas carmesim — se fechou em meu pescoço com uma facilidade absurda, me erguendo como se eu não passasse de um boneco de pano.
Lutei. Me debati. Mas, de nada adiantava. Meu corpo simplesmente parou, congelado sob aquele toque profano.
O olhar do demônio perfurava minha alma. Não buscava respostas — vasculhava. Lia. Julgava e por um momento seus olhos pareciam brilhar de satisfação.
Então, ele falou.
— Seradin, finalmente viestes! — Sua voz era feita de aço e abissal, tão afiada que parecia me cortar a cada palavra.
Oo som reverberava dentro de mim, como se a própria realidade ecoasse suas palavras.
— Com tua chegada poderei selar o acordo com minha senhora. Já obtive o amor do luar, resta apenas a inocência do amante.
Uma brisa fria soprou sobre minha pele.
E antes que eu entendesse… o mundo girou.
Fui lançado no ar — ou era minha alma sendo arrancada?
E então, lá de cima, pude me ver:
Meu corpo decapitado, tombando nos braços da escuridão.
Acordei em um sobressalto levando as mãos ao pescoço. Felizmente minha cabeça ainda estava lá.
Tudo ao redor girava lentamente, como se o mundo ainda estivesse despertando comigo.
Quando o torpor passou, percebi que estava deitado em uma cama grande e confortável, envolto por lençóis brancos e leves. Cortinas alvas formavam um dossel ao meu redor, filtrando a luz suave que vinha de uma janela próxima.
Por alguns segundos, permaneci imóvel, tentando entender onde estava — e por quê.
A última lembrança real era a queda. A dor. Os gritos. Depois disso, tudo se dissolveu naquela sequência de sonhos distorcidos e visões impossíveis.
Foi tudo real? A operação? Aqueles seres? As vozes?
Toquei meu corpo devagar, buscando as marcas da surra. Costelas, braços, pernas… Nada. As dores haviam sumido, como se alguém tivesse passado uma borracha sobre meu sofrimento.
Como minhas feridas já estão boas? E o que foram aquelas coisas que vi em meu sonho?
As perguntas não paravam de se acumular. Estou vivo mesmo? Ou isso é só mais um pedaço do sonho?
Ficar ali, quieto, me escondendo de tudo outra vez, era tentador. Mas o medo de não saber — de ser engolido por mais um delírio — falou mais alto.
Respirei fundo.
— Com licença…? — chamei, com a voz rouca. — Tem alguém aí?