Laços do Luar - Um novo mundo - Capítulo 4

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O Palácio do Vale do Luar

 

Três figuras me observavam atentamente.

O primeiro parecia ser um médico — ou ao menos sua roupa indicava isso. Tinha óculos de meia-lua pendendo no nariz e cabelos grisalhos que sugeriam seus quarenta e poucos anos.

Ao lado dele, estava uma enfermeira, usando o clássico quepe branco com uma cruz vermelha estampada. Cabelos prateados com mechas rosas e grandes olhos cor de mel.

Mas, de todos eles, o que mais me chamou à atenção, foi a pessoa que me olhava com um ar mais sério. Era a mesma moça da sala de operações que vi em meu sonho.

Mas naquele momento, os traços dela estavam bem mais nítidos do que na minha memória. De fato, ela possuía um pequeno chifre arredondado entre sua franja e me analisava com cuidado como se algo a preocupasse.

— Ele está fora de perigo mesmo? Todos os machucados dele estãoforam curados? — A moça de cabelos lilás falou com o doutor.

— Sim Vossa Alteza, ele está perfeitamente bem.

Ela se virou para mim mais calma, com as mãos sobre os joelhos se inclinou um pouco em minha direção:

— Não se pre-o-cu-pe. — Ela falou pausadamente, como se estivesse tentando ensinar um idioma a um estrangeiro ou falar com um bebê. — Vo-cê es-tá se-gu-ro, en-ten-de? Se. Gu. Ro!

— Eu consigo te entender, moça… — Respondi timidamente, recuando um pouco para a cabeceira da cama.

— O que? Como? — Ela perguntou confusa.

Tanto ela como os demais ficaram surpresos, me incluindo na conta.

Me afundei ainda mais contra a cabeceira da cama, como se isso pudesse me fazer desaparecer. Eu só queria evaporar dali.

— De qualquer forma, como você se sente?— A garota continuou, — Você estava muito machucado. De qual ponto da tapeçaria você veio? Só alguém passando por algo muito sério se arriscaria a cruzar o Tear… — A cada nova pergunta o entusiasmo dela aumentava me deixando mais e mais acuado.

Tear? Tapeçaria? Viagem? Como se já não bastasse toda aquela maluquice, essa garota ainda me lança uma saraivada de perguntas malucas.

Me afundei o máximo possível nas cobertas nacom a esperança de que os ataques cessassem, ao perceber isso ela se afastou um tanto envergonhada, mas mantendo a postura firme, o melhor possível.

— Bem, de qualquer forma, vista-se — Ela apontou para uma porta no fim do corredor — Ali há algumas roupas para você, após isso conversaremos melhor.

— Me acompanhe — disse a enfermeira gentilmente.

Ela me guiou até o trocador.

Vesti uma camiseta branca de algodão leve e uma calça de linho claro. Um cordão rústico passava pelas alças, como um cinto improvisado. Me olhei no espelho e ainda não podia acreditar que estava totalmente bem.

Tudo aquilo beirava o absurdo. Eu não fazia ideia de onde estava — nem de quem eram aquelas pessoas com trajes esquisitos e olhos atentos. Só sabia de uma coisa: na primeira chance, eu ia fugir.

— Me perdoe por ela. Vossa Alteza ficou muito aliviada ao saber que você estava bem. Ela mesma o encontrou e trouxe até aqui. Se não fosse por ela, provavelmente não teria sobrevivido.

— Espera, o que!? — Aquilo me pegou de jeito — Meu estado estava tão ruim assim? E como assim Vossa Alteza?

— Me perdoe, acho que estou falando mais do que deveria.

Minha última lembrança era da queda — catorze andares direto para o concreto. Pela lógica, eu deveria estar morto.

Mas pela mesma lógica, pessoas não deveriam ter chifres nem orelhas de elfo.

Ou eu enlouqueci… ou morri. Não tinha muita alternativa.

Ao sair, peguei minhas roupas surradas que estavam em um canto. A garota me esperava no que parecia ser a saída daquela sala hospitalar.

Ela vestia uma camisa de mangas longas ajustada ao corpo, parcialmente coberta por um espartilho de couro escuro que destacava a postura firme. Usava calças de linho branco e botas de cano alto — o tipo de visual que lembrava aquelas nobres ousadas dos filmes de ação, com um toque de praticidade e elegância.

— Perdoe minha falta de educação. Você deve estar cheio de perguntas — disse, com um tom mais leve. — Vamos começar novamente.

— Elizabeth Arievilos de La Troi — ela fez uma breve reverência — Duquesa do Vale do Luar e estudiosa do Tear. Prazer em conhecê-lo.

— Er.. Eu sou… James. James Drumont… — Tentei devolver a reverência meio sem jeito.

Elizabeth deu uma risadinha.

— Não se preocupe, um aperto de mão basta, senhor Drumont — Ela puxou minha mão apertando com firmeza.

— Nome forte, por sinal. Parece carregar alguma história.

A duquesa fez um gesto me convidando para sairmos de lá.

Caminhando pelos corredores percebi como o lugar era imenso e bem decorado. Cada passo revelava novos detalhes — colunas entalhadas, vitrais colorindo o chão como se a luz estivesse brincando comigo, e tapeçarias que contavam histórias que eu não conseguia entender. Era como andar dentro de um castelo saído de um sonho ou de um livro antigo… e eu me sentia completamente fora de lugar.

Mais adiante, um grande quadro retratava o fim de uma guerra. Uma mulher em trajes brancos — provavelmente uma comandante — erguia a espada diante de soldados derrotados. Um deles, de joelhos, implorava por misericórdia. Atrás, uma cidade em ruínas gritava o preço da vitória. Criaturas bizarras jaziam ao chão, e civis comemoravam com lágrimas nos olhos.

Seguimos em silêncio, o som de nossos passos ecoando pelos corredores largos. Quando a porta se abriu, fomos recebidos por um salão oval, iluminado e decorado com uma grande mesa central repleta de comida. Serviçais postavam-se nas paredes, imóveis, como se aguardassem um comando divino.

 — Por favor, sente-se —disse a jovem, apontando para uma cadeira. Um mordomo se adiantou e puxou-a para mim com um gesto elegante.

— Como está se sentindo? —perguntou Elizabeth.

— Bem melhor, obrigado — Disse sem jeito enquanto outro mordomo me servia uma fatia de carne e um pouco de vinho.

Eu nunca havia sido servido antes. Aquilo tudo parecia um sonho — ou um erro.

—Que bom — ela sorriu — Aproveite para repor suas energias, quero saber todos os detalhes da sua viagem.

— Desculpe, mas que viagem?

— Pela Tapeçaria — Ela me olhou confusa — Você foi um dos primeiros a conseguir tal feito.

— Me perdoe, eu não faço a mínima ideia sobre o que você está falando. Tudo ainda está muito confuso.

Falei com receio, enquanto minha voz falhava aos poucos.

— Entendo. É como dizemos por aqui: “Um fio solto pode ser o começo de uma nova trama.”

— Desculpa… o quê? — franzi a testa.

— Ah — Elizabeth sorriu — é só um modo de dizer que… até o que parece fora de lugar pode dar início a algo importante. Você chegou aqui por um acidente. Mas talvez… não seja tão acidente assim.

Tentei digerir aquilo, mas o “fio solto” ainda me fazia imaginar que eu era parte de um casaco mal feito.

Todo aquele papo maluco só me deixou mais nervoso, meu coração acelerou e os pensamentos ruins voltaram a tomar conta.

— Eu supostamente deveria estar morto… depois de cair da sacada do meu prédio.

— Eu deveria ter virado uma mancha de sangue no hall de entrada… — minha fala foi ficando pesada e meus olhos marejados.

Eu deveria estar morto — A ficha só caiu agora. Meu corpo enrijeceu e minha ansiedade me tomou por completo. Não podia controlar minhas lágrimas nem o sentimento sufocante que me consumia.

— Eu sinto muito — disse Elizabeth baixinho, fazendo um gesto sutil para que os criados se retirassem.

Ela veio até mim e colocou a mão em minhas costas, com cuidado.

— Está tudo bem. Você não precisa explicar nada agora. Só… deixa sair.

Depois de alguns minutos toda minha angústia foi se dissolvendo e comecei a voltar a mim.

Fiquei assim por alguns minutos, até que o sufoco deu espaço à respiração.

— Me desculpa. Eu… eu nem sei o que dizer. Isso não deveria ter acontecido — me levantei meio desajeitado. — Eu vou embora. Já incomodei demais.

O peso da vergonha era quase tão sufocante quanto o que me derrubou.

— James — a voz dela veio baixa, mas firme. — Eu já disse: não tem problema.

Ela não falava como quem tenta consolar por obrigação. Era… diferente. Natural, aconchegante, cálido .

— Parece que você carregou mais dor do que qualquer um deveria — continuou, pegando minha mão com ternura. — Então, por agora… deixe o tempo fazer o que ele faz de melhor, curar.

— Quando se sentir pronto — e só quando estiver — me procure, está bem?

Ela sorriu. Não um sorriso de quem espera algo em troca. Um sorriso de quem… entende.

— Às vezes, é preciso desfazer para tecer melhor. — disse ela, olhando nos meus olhos.

— Outro ditado local? — perguntei, ainda com a voz embargada.

— Um ensinamento antigo. Não significa que a dor desaparece… só que ela pode dar espaço pra algo mais forte — explicou com serenidade.

Nunca fui tão bem tratado como nos últimas horas — não que eu lembrasse.

Até agora, às pessoas com quem convivi sempre tiveram pressa para me julgar. Ou para usar.

Mas Elizabeth… era muito gentil, atenciosa e por alguma razão havia algo nela, algo que me dava uma sensação de segurança e uma emoção que não poderia ser explicada apenas sentida.

— Obrigado — murmurei.

Ela assentiu com gentileza, voltando para sua cadeira.

— Sinceramente, não sei como agradecer sua… gentileza — continuei, ainda sem conseguir encará-la direito. — Mas a verdade é que eu não entendo nada sobre essa tal “viagem pela Tapeçaria”. Não sei nem onde estou. Só… apareci aqui. Sem saber o porquê.

— Você está no reino de Solaris, mais precisamente no Vale do Luar.

— Reino de Solaris? Onde exatamente fica esse país? Europa? Nunca ouvi falar desse lugar.

— Nunca ouviu falar? Nossa isso é bem inusitado. Também não conheço essa tal de Europa que você falou, mas deixe eu pegar um mapa — A duquesa balançou um dos dedos e um pergaminho que estava do outro lado da sala veio voando até nós.

— O-o que foi isso?! — recuei na cadeira, quase derrubando o prato.

— C-como… isso aconteceu? — Minha voz saiu trêmula, mais surpresa do que medo, parece que o sonho da mesa de operação não foi um sonho afinal.

— É só uma tecelagem simples — Ela olhou assustada com a minha reação. Em seguida abriu o pergaminho e mostrou o mapa do continente.

— O reino de Solaris é dividido em cinco Ducados e uma capital. Aqui, aqui, aqui… — ela apontava para regiões distintas no mapa.

— E bem no centro está a Academia Real. Todo cidadão, seja nobre, burguês ou minstrel, estuda sobre magia lá. Agora, graças a algumas novas reformas muitos plebeus também passam por lá. Todos são enviados para receber educação e uma chance de servir ao reino de várias maneiras.

Magia?

 Era isso. Eu tinha sido arrancado do meu mundo e jogado em outro — como nos livros e mangás que eu lia para escapar da realidade. Só que agora, não dava pra fechar a capa e fingir que era só uma história.

— Isso é simplesmente incrível… — falei admirado.

Uma brisa fria passou pelo salão — e com ela, a sensação de que algo estava prestes a mudar.

Antes que tivéssemos a chance de terminar a refeição, as portas do salão se abriram com um estrondo seco.

Seis soldados marcharam para dentro em perfeita sincronia, formando um corredor em cada lado.

Eles vestiam fardas cerimoniais douradas, ricas em detalhes, com ombreiras altas, botões reluzentes e faixas cruzadas sobre o peito — roupas tão imponentes quanto qualquer armadura. Os tecidos rígidos se moviam pouco, como se fossem esculpidos para impressionar.

Uma mulher alta com cabelos claros como os primeiros raios da manhã caminhava entre eles. Sua presença era sufocante e seu olhar duro.

— Vossa Majestade — Elizabeth se levantou subitamente fazendo uma reverência forçada.

Eu tentei fazer o mesmo, mas estava congelado pela aura daquela mulher. Seus olhos claros como diamantes me fitaram duramente como se minha presença fosse um insulto.

Percebendo o olhar da Rainha, Elizabeth rapidamente se dispôs a explicar.

— Vossa Majestade, esse é meu convidado, perdoe sua indelicadeza ele não é da regiã…

— Não há necessidade de explicações, Arievilos. Já estou ciente de toda a situação. Toda ela! — A rainha enfatizou suas últimas palavras.

— Garoto — disse ela com desprezo, como se o título fosse uma ofensa — junte seus trapos. Vamos levá-lo para casa.

Casa? Era realmente possível voltar? Olhei para Elizabeth em busca de uma resposta.

Ela não disse nada. Mas o olhar que me lançou gritava.

“Não confie nela.”

— Vamos, James… — disse Elizabeth, com uma tensão em sua voz mais nítida do que nunca.

A guarda real marchava à frente, abrindo caminho pelos corredores do palácio.

Dessa vez não tentei vislumbrar nada, a ideia de voltar me deixou apático.

Logo, chegamos a uma sala redonda, rodeada pelos mais diversos tipos de espelhos. Ao ver de qual lugar se tratava Elizabeth ficou pálida.

No centro da câmara, um espelho imponente dominava o ambiente. Sua moldura de madeira escura era esculpida com precisão quase sobrenatural.

De cada lado, rostos surgiam das talhas — não apenas talhados, mas moldados como se pudessem ganhar vida a qualquer momento.

Elizabeth empalideceu. Uma gota de suor escorreu por sua têmpora.

— Vossa Majestade… pretende mesmo usar o Portal da Lua? A senhora sabe que…

— Basta! — A rainha a repreendeu com fervor — Garoto, siga em direção ao espelho. Assim que o atravessar provavelmente você retornará para seu mundo.

“Provavelmente?” Sério isso?  

Esfreguei os olhos, tentando processar.  

“Meu mundo”? Pera… eu nunca falei isso pra ela.

Os guardas se posicionaram ao redor do espelho e aguardaram que eu me aproximasse. Suas expressões diziam que caso eu não fosse por vontade própria eles me jogariam lá dentro.

Ao me aproximar, notei que inscrições em um dialeto estranho rodeavam a madeira talhada e meu reflexo me encarava.

— Obrigado por tudo. — Falei para a Duquesa — Apesar de termos nos conhecido nesta manhã, posso dizer que nunca fui tratado tão bem quanto hoje. Muito obrigado, Duquesa.

Fiz uma pequena reverência para Elizabeth e por fim encarei meu reflexo.

No início fiquei um pouco indeciso, mas o que eu poderia fazer? Só me restava voltar.

Dei um passo à frente esperando atravessar como em um filme — e bati de cara no vidro.

Se a ideia aqui era atravessar estilo Matrix então alguma coisa deu errada.

— Tsc! — Aurora grunhiu em desaprovação — Vamos, tente novamente — sua frustração era clara. Mesmo após tentar mais algumas vezes o resultado era o mesmo, eu sempre dava com a cara no espelho.

— Isso é impossível. O portal da lua nunca falhou…

— Bem, isso foi algo inusitado — Elizabeth falou com uma grande expressão de alívio.

 — Que maravilha… um problema a mais. — Aurora bufou, sem esconder o desprezo. — E claro, sob os cuidados da sempre altruísta senhora Arievilos.

Ela se virou parcialmente para Elizabeth, o olhar como uma lâmina.

— Se por acaso cruzar com minha querida irmã, diga que sua fuga não muda nada. Continuarei vindo, com ou sem sua permissão.

Antes de sair, lançou-me um último olhar — não de curiosidade, mas como se eu fosse um inseto mal posicionado em seu caminho — e partiu com seus guardas em marcha precisa atrás dela.

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