Laços do Luar - Um novo mundo - Capítulo 5
Melodia da Meia-Noite
Elizabeth se aproximou devagar, mas agora havia algo diferente nela. O olhar antes carregado de preocupação agora parecia mais leve. Seus ombros, antes tensos, estavam soltos. Com um suspiro sutil, ela pegou minha mão.
— James, eu realmente sinto muito que teve de passar por tudo isso — disse, com um tom mais suave, como quem enfim podia respirar de novo.
— Está tudo bem, Vossa Alteza… — respondi, forçando um sorriso — De certa forma, estou acostumado com esse tipo de tratamento.
As mãos dela eram quentes e calmas, quase como um cobertor num dia frio. Só de tocá-las, parecia que o peso da confusão e do medo diminuía um pouco.
Ela deu um sorriso leve.
— Bom, sei que acabamos de jantar, mas toda essa situação me deixou com fome.
— Você não quer me acompanhar até a cozinha? Meu chefe deve fazer algumas guloseimas para ajudar a acalmar os nervos. Quer me acompanhar?
Havia algo quase infantil naquele convite — talvez até inocente como uma garota que deseja consolar o irmãozinho. Como eu poderia recusar?
No caminho até a cozinha, ela parecia mais solta. Falava sem parar sobre o reino, como se quisesse apagar o peso do que aconteceu minutos atrás — distraindo a mim, ou talvez a si mesma, com histórias.
Contou sobre o Vale do Luar, os cinco ducados, a história da fundação de Solaris, e até algumas lendas locais que, para mim, soavam como trechos de um conto de fadas.
Em troca, falei um pouco sobre meu mundo. Evitei detalhes da minha vida — não queria compartilhar os traumas que ainda pulsavam dentro de mim — mas falei sobre as cidades, os carros, a tecnologia, os livros e até o sorvete. Elizabeth ouvia tudo com genuína curiosidade, como uma criança descobrindo um novo brinquedo.
De repente, um cheiro adocicado invadiu o ar, suave no começo, mas logo impossível de ignorar.
Quando cruzamos a porta da cozinha, fui atingido por uma mistura de aromas: frutas cozidas, especiarias e algo que lembrava chocolate com noz. Meu estômago roncou alto.
A cozinha era enorme. Muito mais do que qualquer cozinha que eu já tinha visto — e olha que cresci em uma casa de gente rica. Bancadas largas de mármore negro, armários altos com detalhes entalhados em madeira, utensílios reluzentes organizados em fileiras impecáveis. No centro, uma grande mesa de madeira escura, robusta, como uma âncora no meio do ambiente.
Um homem baixinho e barrigudo estava sobre um banquinho girando uma colher de pau em um caldeirão. Os cabelos negros e curtos já tinham fios grisalhos nas laterais. O avental manchado e o chapéu de chef davam o toque final.
— Minha senhora — Falou o chefe — O cisab está quase pronto. Aqui, prove um pouco. — Ele mergulhou uma grande concha no caldeirão e despejou um líquido espesso dentro de duas tigelas e levou-as até nós.
— Obrigada, Otu — A duquesa levou a colher cheia da substância arroxeada à boca e, em seguida, deu um gritinho de satisfação — Aaaah, como sempre, você é um gênio na cozinha, meu caro.
— Obrigado Vossa Alteza. Me alegra muito saber que a minha comida traz conforto — disse ele com um sorriso discreto, antes de se afastar e nos deixar sozinhos.
— Vamos, James, prove, prove! — Elizabeth praticamente empurrou a tigela para mim. — Você vai amar…!
Eu ri, meio desconfiado, mas levei a colher à boca. Era doce, quente e cremoso, mas com uma nota picante no final que fazia tudo parecer mágico.
— Uau… — foi tudo que consegui dizer.
Elizabeth riu. — Sabia!
— Bem… apesar da confusão aqui parece ser bem tranquilo — falei.
— A Tapeçaria repousa, sim… mas já estremeceu sob mãos traiçoeiras — disse Elizabeth, mexendo o conteúdo da tigela com um olhar distante. — Nem sempre foi assim.
— Houve uma época em que a paz parecia impossível… um cavaleiro chamado Lakhan quase destruiu tudo.
A colher parou por um segundo antes de ela continuar:
— Ele seguia uma entidade caída, uma criatura das trevas que tentou engolir parte do continente.
Sua voz soou mais baixa nesse trecho, como se evitasse invocar más lembranças.
E, como se despertasse de um breve transe, ela piscou e completou, em um tom mais leve:
— Vamos terminar de comer. Depois, vou te mostrar seus aposentos.
Então, como prometido, ela me guiou até o quarto que eu poderia usar, e cá entre nós, que quarto.
As paredes eram cobertas por pinturas elegantes e tapeçarias finas, e a cama — meu Deus — parecia ter saído de um catálogo de realeza, enorme, com lençois de seda e travesseiros que poderiam te engolir de tão fofos.
Mas aí minha ficha caiu, eu não tinha mais roupas.
Meus sapatos estavam mais surrados que pão velho, a camiseta rasgada nas mangas, e o jeans… bom, o jeans parecia ter brigado com um urso e perdido. Se não fosse pelas roupas novas que tinham me dado, eu podia facilmente ser confundido com um sobrevivente de guerra.
— Não se preocupe com isso, James. Amanhã visitarei a cidade de Meridiam e vou te apresentar à minha Charlotte — disse Elizabeth com um sorrisinho de canto, como se lesse minha mente. — Ela é uma estilista e tecelã excepcional. Com sorte, vai querer montar uma coleção só pra você, hahah!
Elizabeth era curiosa a respeito do meu mundo, pude ver em seus olhos um olhar que ansiava novos conhecimentos, mas ela não me pressionou nenhuma vez por respostas, me deixando bem à vontade.
— Amanhã conversaremos melhor. Por enquanto, descanse. — A duquesa se despediu com um aceno e seguiu pelos intermináveis corredores de seu palácio.
Enfim, fiquei a sós com meus pensamentos. Caminhei um pouco pelo quarto, gravando os detalhes do mesmo em minha mente. As paredes eram vermelhas com rodapés brancos, com pequenas pinturas de ondas que me lembravam os filmes medievais que eu tanto via sozinho.
Também havia lamparinas nas paredes e um grande candelabro branco com contornos dourados preso no teto acima da grande cama. Os móveis eram todos talhados na madeira e bem acabados. Era como viajar no tempo e parar na era vitoriana.
Apenas algumas coisas pareciam estar fora de nexo naquele cenário atemporal: havia interruptores perto da porta do quarto e da sacada. Ao apertá-los, as lamparinas e o candelabro acenderam-se iluminando completamente o local.
Eletricidade? Não, não é possível! Tudo ao meu redor refletia uma época passada. Ao me aproximar das lamparinas, notei que pequenos globos dançantes projetavam a luz. Eram como vagalumes presos em um pote, só que bem mais potentes.
Depois da mini exploração em meu quarto, tentei dormir um pouco.
Em vão.
Estaca com a cabeça a mil. O sono simplesmente não iria me agraciar. Senti minha ansiedade me atacando novamenteoutra vez. Então, resolvi caminhar até a varanda e apreciar a vista na tentativa de me acalmar um pouco.
Posso dizer que essa foi uma ótima ideia, a visão era sinceramente linda.
O quarto dava para os fundos do palácio, que era cercado por um jardim quase cerimonial, com cercas vivas perfeitamente desenhadas e flores brancas que cintilavam sob o luar como se guardassem segredos.
Várias estátuas de mármore pareciam vivas em suas poses, elas rodeavam o jardim como se estivessem aproveitando um divertido piquenique.
No centro, havia uma fonte circular grande o suficiente para se banhar nela, e, no meio, um grande chafariz com vários aneis que jorravam veios de água para o céu brilhante.
Ao longe, uma grande pradaria se estendia até uma densa floresta que, por sua vez, terminava na base de uma montanha distante.
Havia neve no topo das montanhas, uma cidade brilhava alegre ao seu sopé e o céu estava estrelado e limpo como nunca vira antes. Tudo era lindo e pacífico. E a noite dava um ar mais sereno a tudo.
Meus olhos, antes dispersos, foram puxados por algo invisível — um magnetismo silencioso até se fixarem nela.
Uma bela moça caminhava entre as flores e as estátuas como se movesse ao ritmo das constelações.
Seus cabelos balançavam ao vento como um véu tecido pelo céu — um azul profundo, salpicado de brilhos tênues, como se as estrelas tivessem se perdido ali. A luz do luar dançava em sua pele castanha.
E seu vestido, era como um manto da própria noite guardando sua beleza dos olhares curiosos.
Ela se aproximou da fonte e sentou-se à beirada com a leveza de quem carrega peso demais no peito.
Ao tocar a superfície da água, um suspiro escapou do jardim — o vento soprou gelado, trazendo consigo um canto doce e triste, como se a noite inteira respirasse com ela.
Cavaleiro dourado… tu és meu amado.
Prometeste voltar… e o tempo parou ao teu lado.
A noite me abraça, vazia e calada,
Desde que a sombra levou tua alma.
Ecoam promessas nas águas do céu,
Mas nenhuma me trouxe de volta o teu véu.
Vivo entre ecos, sem cor, sem sentido…
O luar me consola, mas nunca é contigo.
Aquela melodia me hipnotizava e entorpecia, trazendo sentimentos de conforto e tristeza. Logo, a bela dama estava envolta em uma aura azul-escura.
De olhos fechados, concentrada, seus cabelos se moviam como se estivessem submersos em água.
Subitamente, ela alçou voo aos céus.
As pessoas podem voar aqui?!—Pensei surpreso.
Mas, eu estava tão encantado com a elegância com que ela se movia no ar que a ideia de como aquilo me parecia anormal foi apagada da minha mente. Seus movimentos eram como uma dança, oscilando e balançando na noite, como se a lua e as estrelas cantassem uma balada só para aquele momento.
Seu sorriso e a expressão de liberdade — como se nada no mundo pudesse tocá-la — despertaram em mim uma melancolia romântica, daquelas que só existem nos contos escritos pelos maiores gênios da poesia.
Eu estava tão encantado com sua dança aérea que só percebi que ela já havia me visto e vinha em minha direção quando já estava bem perto.
Mal me dei conta da cara de pateta que devia estar fazendo quando ela flutuou até a beira da varanda ficando pertinho de mim, levou sua mão ao meu queixo fechando-o e dando uma risadinha.
— Gostou do espetáculo? — Ela pousou suavemente ao meu lado e me fitou. Apesar de toda a beleza que carregava, eu podia perceber que havia tristeza em seus olhos. — Me chamo Lunafreya, sei que as coisas podem ser estranhas para você agora, mas logo logo vai se acostumar, não se preocupe.
— Linda — Estava tão hipnotizado por sua beleza, que nem percebi que estava pensando alto, quando me dei conta, fiquei vermelho feito um pimentão.
Ela corou, pega de surpresa e logo deu um sorrisinho.
Cara, eu estava muito envergonhado, fiquei com vontade de me jogar da torre, naquele momento. Não sabia para onde olhar, nunca fui bom com garotas. Bem, na verdade, nunca fui bom com ninguém, o contato humano era algo muito difícil pra mim. E o fato dela não parar de me olhar nos olhos não ajudava, eu tava travadão!
— Bem, não são muitos os que sabem apreciar os encantos da noite. — Ela respondeu com um sorriso caloroso — Se quiser, posso lhe falar das maravilhosas noites no Vale do Luar.
— Seria maravilhoso. — falei.
—Você tem um belo sorriso, James, deveria sorrir mais vezes — Ela falou com ternura.
Mais uma vez, fui pego desprevenido, me fazendo corar.
— A vida nunca me proporcionou nada para que eu pudesse sorrir, senhorita Lunafreya, desde sempre fui motivo de brigas, decepção e vergonha.
— Todos que se aproximavam de mim queriam algo, geralmente algo de meus pais, nunca tive nada verdadeiro. — Minha voz já não estava mais angustiada pelas lembranças que aquelas palavras me traziam.
— Eu sei como é se sentir assim, James, a escuridão já tomou conta de mim uma vez — disse ela com olhos distantes, envolta por sua aura azulada.
— Mas… “Fios que brilham na escuridão carregam a esperança.” — sussurrou. — E você brilhou, mesmo sem perceber.
Fiquei em silêncio. Por dentro, algo se mexeu. Não sabia se era consolo… ou medo de acreditar.
— Você fala essas coisas como se fossem parte de um livro — murmurei.
— São parte de nós — respondeu. — Crescemos ouvindo essas frases como canções antigas. A Tapeçaria fala por meio delas.
— Não me orgulho das decisões que tomei e, por mais que minha irmã tente me reconfortar de sua maneira, ainda não posso… — seus grandes olhos dourados me fitavam, cheios de melancolia, mas aquele olhar não era para mim. Ele estava perdido em lembranças distantes de um passado longínquo.
Lunafreya também já deve ter sofrido tanto quanto eu. Conhecia muito bem esse olhar. Um olhar de culpa e impotência, de alguém que já luta consigo mesmo por muito tempo.
— Ah, você pode me chamar de Luna — disse com um sorriso caloroso.
— Erh… tudo bem — corei um pouco. Meu coração palpitava num ritmo acelerado.
— Aliás, bela canção — falei. — Eu realmente fiquei emocionado.
— Você conseguiu me ouvir? — ela enrubesceu levemente — Nossa… obrigada. E-eu não cantava há décadas, mas, por alguma razão hoje eu senti que poderia fazer isso.
Notei um leve puxãozinho em meu dedo mindinho direito, como se estivesse sendo puxado por um barbante amarrado nele, mas ao olhar não havia nada.
Décadas? Ela não parecia ter nem vinte direito. Não quis cortar o ritmo da conversa perguntando sobre a idade dela, sem falar que pegaria muito mal. Resolvi guardar as perguntas para Elizabeth.
—Bem, parece que dei sorte então. Logo no meu primeiro dia fui agraciado por uma ótima companhia e uma bela música.
Passamos a noite inteira conversando e rindo, foi uma das mais divertidas da minha vida. E, pela primeira vez, eu tive uma noite verdadeiramente feliz. Depois do que aconteceu com Jéssica, nunca pensei que poderia me conectar novamente a alguém dessa forma.
Recordo daquela noite por várias razões, mas a mais importante delas foi que, naquele momento mágico, eu finalmente me encontrei. Não existia mais nada para mim em meu antigo mundo. Queria fazer uma nova vida, eu iria conhecer todos os lugares, aprender tudo e conhecer a todos no Vale do Luar. Esse desejo se tornou meu sonho.