O Conselho das Estrelas - Volume 01 - Bem Vindos ao Conselho! - Capítulo 03
A Diretora.
Um dos lugares mais importantes no Conselho das Estrelas é, sem sombra de dúvidas, o consultório médico. Se estiver apenas de passagem, terá a honra de ver nossos formidáveis médicos e enfermeiros em ação, mas caso precise de uma consulta, significa que você está em sérios apuros.
Muitas estrelas são obrigadas a atravessar inúmeros corredores pintados de verde-musgo e esperarem na fila para receber o atendimento. Essa é a realidade de todo consultório da Terra, e como estamos em uma empresa com milhares de funcionários, a situação fica mais complicada.
Para o alívio de todos, o ambiente possui uma força gravitacional que permite as estrelas flutuarem sem esbarrar em qualquer coisa no caminho. Um grande conjunto de salas e atendentes trabalhando a todo vapor na garantia de que todos recebam tratamento da forma mais rápida possível — Só não garanto que seja muito eficiente.
E atrás de uma das muitas portas de cristal, um jovem de cabelos loiros estava paralisado na maca do consultório, lutando contra a dor nas costas e a indecisão de sua médica. Nem mesmo a melodia reconfortante ecoando nos autofalantes do recinto era capaz de aliviar a situação.
— Eu só preciso de repouso, Doutora Alhenna. Isso é realmente necessário? — perguntou Cosmo movendo os braços de forma rígida.
— Não tenha pressa docinho, deixa que a doutora cuide disso! — afirmou a idosa de jaleco estrelado, pele morena, cabelos brancos amarrados por um coque e de expressão atrevida.
Ela andou de forma vagarosa até uma mesa no canto esquerdo da sala, onde residia sua coleção peculiar de instrumentos médicos. Analisou cada peça buscando o maior nível de utilidade, mas foi rejeitando todas as opções possíveis.
Isso significa que anti-inflamatórios, curativos ou pomadas reparadoras não faziam parte do gosto pessoal. O momento exigia praticidade, mas gastar tempo paquerando as bugigangas era mais interessante.
Ver a seletividade de Alhenna deixou o pobre Cosmo arrepiado, pois seu destino estava nas mãos de alguém que buscava a solução mirabolante para algo fácil de ser resolvido. Porém, como não detinha o cargo de doutor, restou confiar nas habilidades dela.
— Doutora, tem certeza que não está exagerando? — perguntou Cosmo, observando a idosa jogar frascos de poções e itens cirúrgicos pelos cantos da sala — Uma simples pomada viria bem a…
— Essa aqui não vai, essa também não… Certo, eu já sei o que fazer!
Alhenna alongou as últimas juntas boas que lhe restavam e se aproximou de Cosmo para transferir parte de sua magia anuladora por meio do contato físico com a bochecha esquerda. Assim que os lábios encostaram na pele do professor, uma sensação estranha e, ao mesmo tempo calorosa, iniciou uma série de efeitos anômalos.
Marcas de batom surgiram por todo o corpo de Cosmo, e depois de alguns segundos, insistiu em se levantar da maca. A rigidez oriunda das costas desapareceu num passe de mágica, e agora, restava verificar se as articulações funcionavam de forma adequada para voltar ao trabalho.
— Você ainda vai sentir uma sensação de peso com movimentos repetitivos, mas isso é tudo que eu pude fazer, meu querido Cosmo!
— Não podia esperar menos da mulher que criou a Loção do Amor Verdadeiro Para Corações Rígidos — disse Cosmo, verificando se os movimentos do corpo estavam em ordem — Obrigado, Doutora Alhenna!
— Isso não foi nada meu anjo, mas posso fazer algo mais eficaz se quiser ficar totalmente curado. Faz tempo que não tenho um homem bonitão como paciente! — A reação sugestiva de Alhenna provocou calafrios no rapaz, enquanto se aproximava a passos lentos.
— Muito obrigado, mas já estou me sentindo melhor. É melhor eu ir andando…
— Rapazinho, não pode sair desse jeito! Ainda precisa se recuperar — A doutora alertou, sacando um objeto retangular no qual o professor conhecia muito bem — Eu só preciso registrar mais um trabalho bem feito e os seus agradecimentos!
— E-essa é a minha câmera? Mexer nas coisas dos pacientes é ilegal!
— É só por um tempinho, agora vem cá que a doutora vai te dar um presentinho!
A doutora franziu os lábios, disposta a conceder um prêmio no qual Cosmo não tinha pretensão alguma de receber. Se não fosse por algumas batidas na porta de cristal, ele seria marcado por aquele evento pelo resto de sua pós-existência.
— Eu estou atrapalhando alguma coisa? — Quem abriu a porta foi uma mulher de cabelos negros com pontas alaranjadas, olhos cor de esmeralda, um colete de couro com espinhos e porte físico bem definido. Naquele momento, o jovem dos trajes elegantes a viu como um anjo que atendeu às suas preces.
— Antares! Você chegou bem na hora! — respondeu Cosmo ao pegar a câmera de volta e se afastar de Alhenna — Já podemos ir agora, estou me sentindo bem melhor!
— Vocês são jovens muito frescos! O Seu João era um homem de verdade! — esbravejou a doutora.
— Eu venho me acertar com você sobre o pagamento mais tarde, Doutora Alhenna, obrigada pela atenção. — falou Antares enquanto fechava a porta.
— Que seja, saiam daqui! — E com a insatisfação transbordando no rosto, a médica fechou a porta com o máximo de força que a meia idade lhe permitiu usar.
…
Sob um universo vibrante e repleto de possibilidades, o professor e a mulher das mechas alaranjadas dirigiam pelas estradas coloridas do Conselho. Ao fundo, era possível ver as majestosas ilhas-asteroides com diversos pontos luminosos em movimento, as estrelas no ciclo infinito de trabalho.
Ele teve a sorte de receber uma carona num belíssimo carro, a estrutura aerodinâmica evidenciada pelo formato circular e realçado com o belíssimo tom de vermelho escuro. Sua aparência era parecida com uma Ferrari, a referência sutil para que eles, assim como os outros colaboradores, mantivessem a familiaridade em dirigir um automóvel da Terra.
Aquela jóia do automobilismo sideral pertencia ao setor da Segurança, e sendo parte do mesmo grupo, Antares conhecia a Rodovia Nebulosa com a palma da mão. Ela dirigiu pelas ruas menos movimentadas com a intenção de conversar com o seu grande amigo, distraído pela miríade de trabalhadores vistos pela janela do veículo.
— Eu não sabia que você se amarrava nas mais velhas, Cosmo.Podia ter me contado antes! — disse Antares num tom de zombaria.
No entanto, não recebeu outra resposta de Cosmo, que permaneceu observando o trabalho das estrelas como se estivesse preso na própria imaginação.
— Deve ser saudade do Seu João, pensa num velhinho teimoso… Se for por causa da Doutora Alhenna, ele sempre arrumava um jeito de se esfarelar todinho.
— Foi você que me nocauteou na Cúpula da Iniciação? — O rapaz questionou, trocando o tema da conversa no mesmo instante.
— Eu… Veja bem…. Só estava seguindo o Protocolo de Segurança, tudo bem? Não é nada pessoal.
— E onde estão os meus novos alunos? Não os vi no consultório e devo a eles uma aula bem apropriada!
— Bom… meio que mandei eles para a detenção do Conselho… Depois do que rolou na Cúpula…
— O quê? Você mandou eles para lá? — Cosmo estava prestes a extravasar o descontentamento com a colega de trabalho, mas as fieis companheiras dela fizeram questão de amenizar o comportamento explosivo.
Mais rápidas que cobras na bota de um vaqueiro desavisado, o aglomerado de correntes prateadas se enrolaram no torso do rapaz, o imobilizando no mesmo instante. A expressão de surpresa mudou para uma careta fechada, afinal de contas, ele sabia que estava em desvantagem na presença delas.
— É claro… Você tinha que trazer suas “melhores amigas” com você… — Cosmo debochou — Eu vou ficar muito chateado se eu souber que elas fizeram algo com os meus alunos!
Sendo muito atrevidas, as amigas de Antares tiraram a câmera da maleta para tirar uma foto do professor, como se tentassem rir de sua situação. A careta de desgosto ficaria eternizada na galeria e não tinha como interromper os flashes da discórdia.
— Não quero ser indelicada, mas um dos seus “alunos” transformou a cúpula num cenário de guerra! Como eu tenho muito respeito pelo seu ofício, fiz a escolha mais racional e os mandei para lá… Mas não se preocupe, pois eles também receberam o tratamento da equipe médica!
— Espero que melhorem logo, tenho muito que ensinar para aquelas estrelinhas. Já consigo imaginar em quais setores cada um vai atuar!
— Tem certeza que vai insistir nisso? Você sempre pega os esquisitões para ensinar, e por isso nenhum de seus alunos foi contratado até agora…
— Eu concordo que eles são um pouco esquisitos, mas isso significa que precisam de atenção dobrada e estou disposto a correr o risco! Eu garanto que vou fazer meus alunos se destacarem antes de você se lembrar da sua música favorita!
— Ei, não fale isso! — respondeu Antares com uma entonação birrenta — De todas as coisas que lembro da minha vida passada, essa é a única que me machuca por ter esquecido!
— Viu só, ainda estou na vantagem!
Por mais que se vissem muito pouco, Cosmo e Antares aproveitavam essas pequenas caronas na Serpente Sideral para colocar o papo em dia. A rotina no Conselho das Estrelas tende a ser corrida e repleta de surpresas, então nunca falta um assunto a ser colocado em pauta.
— Então, Carinha… Se você pudesse escolher outro emprego além de professor, o que seria?
— Essa é uma pergunta muito específica, Antares. Qual a razão disso?
— Só estou jogando conversa fora, faz tempo que não saímos juntos para fofocar — A mulher respondeu com um sorriso travesso — Outra coisa, já falei que pode me chamar de Daniela, não por esse codinome bobo.
— Bom… Eu lembro vagamente de ter trabalhado numa padaria… Mas fazer pães e doces seria inútil por aqui, já que estrelas não precisam se alimentar.
— É sério? Você precisa se esforçar mais para me dar uma resposta melhor!
— Eu não sei… Acho que a vontade de ensinar foi a única coisa que herdei da pessoa que já fui um dia. E o Conselho é um lugar enorme! Podemos aprender muitas coisas valiosas por aqui.
— Poxa, não acha que a vida pode ser muito mais do que… Você sabe, ensinar pessoas desnaturadas?
— Qual é o sentido de ter vivido sem um objetivo? É preciso muito esforço e dedicação para se tornar alguém importante na sociedade, e se eu sou tão proativo deste jeito, acho que fui um grande professor nos dias de glória!
— E você lembra de ter sido um professor? Desde que nos conhecemos, você não fala muito da sua vida passada…
— Agora você me pegou… Desde que vim para cá, sempre forneci conhecimento para todo mundo, sejam jovens ou idosos. Eu gosto muito do que faço, pois quando alguém estiver em dúvida sobre sobre o mundo ou si próprio, os professores sempre irão ajudá-lo a encontrar as respostas, é isso que eu acredito!
— Aiai, queria pensar assim sobre o meu trabalho… — disse Antares enquanto focava na pilotagem.
— Mas o seu cargo é algo muito importante Antares! Você e os outros seguranças cuidam de todas as estrelas e mantêm a ordem imperando em cada setor da nossa filial. Não acha isso um máximo?
— É claro que sim, mas desde que subi de cargo eu foco demais naquilo que faço que esqueço tudo ao meu redor. Não tem graça ficar no mesmo canto sendo que há um universo inteiro nos esperando, consegue entender meu ponto?
— É claro que sim Antares! — afirmou Cosmo entusiasmado. — Trabalhar na Segurança de outras filiais é muito importante, eu só não sei se vão te liberar pelo relacionamento rígido entre os diretores.
— Cosmo, você é uma figura! — brincou Antares tentando esconder o leve tom de decepção na voz. — Um dia, você vai entender o que estou falando.
— Bem, eu só sei que não vou desistir das minhas Estrelinhas. — O jovem continuou — Quero vê-los crescer e se tornarem algo maior, só assim posso dizer que meu trabalho valeu a pena.
— Eu aprecio o seu otimismo, mas suas ações geraram consequências bem sérias, e é exatamente isso que estamos indo corrigir.
— Corrigir? Para onde estamos indo? — Cosmo ficou boquiaberto quando a vista no horizonte respondeu suas dúvidas.
Em meio as ilhas minúsculas e os diversos ramais das ruas coloridas, um gigantesco casarão de pilastras esbranquiçadas ficou em evidência. Aquilo não se tratava de um reles palácio onde estrelas de alta hierarquia se isolavam dos operários comuns, mas era a sede da pessoa detentora do maior poder existente na filial terrestre.
— Para o escritório da Diretora… — terminou Antares de forma séria — Ela quer falar com você.
…
Se estiver precisando de alguma ajuda, reivindicar seus direitos ou se justificar por erros sem precedentes, é provável que você vá parar no escritório do diretor e torcer para que ele esteja de bom humor. Esta era a situação em que Cosmo se encontrava, prestes a ficar de frente com uma das figuras de maior autoridade depois do próprio Ancião.
A mulher em questão faz parte dos oitenta e seis diretores que gerenciam as estrelas da galáxia inteira, se certificando que tudo saia da maneira correta e não tenha que lidar com a ira repentina do Ancião. Dedicou bilhões de anos em nome da carreira profissional, e hoje conquistou o respeito de todos os funcionários.
Essa sensação de superioridade era bem representada nas dependências do casarão, se estendendo da sala de espera até a central administrativa nos andares inferiores. O ambiente foi inspirado no famoso castelo de Buckingham, com detalhes minuciosos esculpidos em cada parede, cadeiras de couro reforçado, um tapete extenso e bem adornado, além do esforço descomunal investido na construção do local.
— Acho que chegamos um pouco cedo, ela está em reunião com o casal de Flarkianos que estavam fugindo da própria filial. — disse Antares de forma apreensiva. E nem todos os alienígenas querem escravizar os humanos, lembre-se disso.
— Eu sei que a Diretora tem assuntos importantes a lidar comigo, mas podemos voltar mais tarde! Temos que liberar os meus… — Determinado, Cosmo se levantou em um salto e caminhou até a porta, mas Antares foi ligeira e o enrolou em uma de suas correntes.
— Calma lá, não precisa ser tão apressado! Fique tranquilo pois ela é mais que uma simples mulher, é um anjo de pessoa!
Assim que a segurança terminou de falar, o gigantesco portão de aço que levava ao escritório da Diretora foi derrubado. Os créditos daquela bagunça caíram na conta do casal de lagartos roxos que corriam por suas vidas.
— Sebo nas canelas Bilu! — gritou a Flark fêmea carregando o seu marido — Ela não é uma simples mulher, é um monstro fora da jaula! — Assim, a dupla saiu de cena quebrando a porta do corredor.
— Codinomes: Cosmo e Antares, vocês podem entrar! — disse uma voz jovem e zombeteira vindo de dentro do escritório, e os dois não tiveram outra escolha além de atender ao chamado.
— Seja o que o Ancião quiser… — completou a mulher de colete ao ir até a sala, mas sem querer esqueceu que Cosmo estava amarrado nas suas correntes.
— Antares, eu ainda estou preso… Antares? Ei, Antares!
…
Um corredor extenso e iluminado por esferas púrpuras separava as duas estrelas de seu destino principal, e Cosmo gritou para Antares soltá-lo por vários minutos até alcançarem o escritório.
Quando chegaram, viram que a elegância dos cômodos anteriores mostrou-se ainda mais presente nas paredes roxas com adornos dourados, nos gaveteiros situados na esquerda, quadros pendurados na direita e uma cadeira de couro com encosto comprido e arredondado.
E por baixo da mesa repleta de documentos, era possível ver os rostinhos de três meninas cochichando entre si de forma zombeteira. Elas usavam vestidos com adornos em branco, e tinham cabelos ondulados de cores variadas como azul, vermelho e verde
— Caramba, a Antares pegou ele de jeito! — A menina de cabelos azulados comentou.
— Ele deve ter feito uma coisa bem feia pra estar aqui! — continuou sua colega de cabelo vermelho.
— Esse aí tá lascado! — Por fim, a menina das mechas esverdeadas sorriu ao reconhecer o destino do rapaz elegante.
No momento que Antares e Cosmo se acomodaram, a enorme cadeira se virou, mostrando a definição de autoridade, beleza e imponência em carne e osso. Seu corpo era alto e com a musculatura digna da mulher mais forte da galáxia, mas isso não ofuscava a graciosidade expressada pelo olhar místico e sedutor, as pupilas brilhantes como uma nebulosa.
Ela vestia um blazer cinza com uma blusa azul por baixo, além da saia preta que deixava apenas os joelhos à mostra. Porém, o gigantesco sobretudo feito com pele de urso residia nas costas para diversificar o típico visual executivo.
A pele parda, cabelos amarrados por um rabo de cavalo deixando uma simples mecha em exposição, e a expressão de quem viu aquela cena se repetir centenas de vezes e esperava o momento certo para provocar o caos. Esta era uma mulher que parecia séria e paciente, mas intimidadora e implacável como um verdadeiro predador.
Caro viajante, acabamos de entrar na caverna da Ursa Maior!
— Seja bem-vindo, Cosmo — falou a mulher com um tom suave, mas implicante. — Temos muito o que conversar.