O Conselho das Estrelas - Volume 01 - Bem Vindos ao Conselho! - Capítulo 08
Intervenção Divina.
— Isso é realmente necessário ? — questionou o professor que, após um longo período desacordado, se viu amarrado com as correntes de prata no banco de passageiros da belíssima Ferrari de Antares.
— Você foi pego em flagrante com um passe adulterado da Detenção, e ainda por cima agrediu uma funcionária da segurança — respondeu a mulher de maneira firme — Não se mexa, ou as correntes vão te espremer igual a uma laranja.
— Mas estrelas não são como laranjas. Se eu for espremido, vai causar uma grande explosão de energia!
— Parabéns, você pegou o espírito da coisa. Agora fique quieto, vamos chegar ao Casarão Administrativo e resolver essa sua “aposta” com a Ursa…
Em todos os lugares que passaram, os funcionários pararam o trabalho para ver um rapaz preso num emaranhado de correntes prateadas. Eles pareciam alegres com a belíssima Antares ter pego outro meliante, e ficaram cochichando sobre o seu destino cruel.
Por mais que fossem amigos de longa data, Cosmo ficou receoso com a ideia dela. Neste momento, a Ursa Maior estava reunida com todos os supervisores para discutir assuntos pertinentes ao futuro da filial terrestre, e as chances de causar outra confusão eram bem altas.
— Antares, eu sinto muito pelo seu colete, mas não me leve de volta para a Diretora!4
— Você sente? Então pensasse no valor sentimental desse traje antes de rasgá-lo. Faz ideia de como eu o consegui?
— Foi quando o povo de Sawaria ameaçou conquistar a filial de Ares e você o ajudou a finalizar o conflito! — Cosmo não podia estar mais enganado como agora, e por consequência, as correntes o apertaram tão forte como se tentassem espremer uma espinha. — Droga! Pra quê isso?
— Ares estava fraco demais para segurar aquelas tropas, e eu sendo uma simples funcionária da segurança encontrei sua lança perdida. Eu o protegi até se recuperar e encerrar aquela batalha. A Ursa me aceitou como aprendiz e recebi o colete como uma medalha de honra. Ele é o símbolo que representou o inferno que passei naquele momento , e agora, jamais terei outro igual!
— Certo, mas você não pensou em como iria me sentir com aquelas estrelinhas trancafiadas e meu emprego em risco? Isso é hipocrisia da sua parte! — As correntes não gostaram da ousadia de Cosmo, e o apertaram de volta.
— Hipocrisia? Você está colocando tudo a perder e eu só quero te ajudar. Acho que devemos reavaliar a nossa amizade!
— Acho bom mesmo! Se fossemos amigos de verdade, entenderia que estamos numa situação de vida ou morte, por mais redundante que isso pareça!
— É por isso que você deve aceitar o novo cargo! Aposto que vai se adaptar rapidinho, ou achou que seria professor para sempre?
— Claro que sim! Este é o Pós-Vida, tudo devia ser eterno. Não adianta você falar que a vida é muito mais que trabalhar, pois adivinha, eu só sei fazer isso!
— Chega! Pra mim já deu! — Vendo que discutir seria perda de tempo, Antares pisou no acelerador, fazendo seu prisioneiro balançar de um lado para o outro — Vamos chegar lá daqui a pouco, e até lá, sua maleta e o passe estão confiscados! — Em seguida, mostrou o cartão de plástico e a câmera na frente do professor, servindo como punição do confronto de minutos atrás.
Se ela mantivesse o ritmo, chegaria ao casarão administrativo em poucos minutos. No entanto, a Ursa Maior estava muito ocupada para tratar de assuntos pífios, então havia tempo de sobra para um acerto de contas.
Ela só não contava que aquela oportunidade também seria um teste de paciência com o local onde estavam. A feição que já parecia carrancuda se retraiu ainda mais quando um enorme furgão laranja passou voando pelos dois, deixando uma trilha de poeira coloridas e algumas caixas de itens importantes para trás.
— Essa não, estamos no Arquipélago dos Envios… — reclamou Antares, colocando a mão sobre o rosto — Eu simplesmente detesto esse lugar!
— Eu imagino o porquê. Mas enfim, quanto mais tarde chegarmos na Ursa será melhor para mim!
…
Os funcionários do Arquipélago dos Envios, também conhecido como Setor de Transportes, residiam em diversos galpões carregando mercadorias variadas para a frota de furgões entregá-las aos outros departamentos do Conselho. Para isso, o gestor da equipe escolheu um agrupamento colossal de ilhas no intuito de acomodar suas instalações, eles não tinham esse nome à toa.
Quem ousasse trabalhar naquele ambiente precisava lidar com o ronco frenético das máquinas e palavras de baixo calão dos funcionários. Seja nas pontes, ilhas ou a céu aberto, milhares de estrelas viviam nesse ciclo infinito de correria desenfreada, e como não sentiam vontade de descansar, a carga de trabalho era bastante excessiva.
Com isso em mente, Antares dirigiu pela fileira de carros e vasculhou os arredores a fim de encontrar um lugar que não tivesse construções ou pessoas para serem mandadas pelos ares. Percorrer o engarrafamento mostrou-se trivial, pois na sua humilde opinião, aquilo era mais fácil de desviar que os golpes da Ursa Maior, capazes de destruir até o maior dos asteroides.
E acorrentado no banco de trás, Cosmo observava os colegas desbravando a rotina intensa de costume. Mas havia algo diferente naquela cena monótona, alguns membros interromperam as operações com os veículos e olharam para cima, como se alguma coisa estivesse os hipnotizando.
Logo, o que aconteceu com apenas três funcionários foi se alastrando entre os demais, um tipo de efeito manada que deixou a imaginação do professor correr solta.
— O que eles estão olhando? — Cosmo ansiou por uma resposta, mas viu que isso não aconteceria pois Antares havia escolhido o lugar ideal para um pequeno “diálogo”.
…
As brigas rotineiras no Arquipélago dos Envios resultavam em três grandes consequências: pressão entre os funcionários, destruição de propriedade, bens materiais e mais confusão. E para arrumar a bagunça dos outros, grupos de Zeladores e Arquitetos entraram em ação.
No cenário atual, os dois setores uniram forças para reformar um galpão de peças abandonadas nas dependências do arquipélago. O trabalho não seria fácil, pois além de serem obrigados a ouvir reclamações dos Transportadores, o lugar dava sinais de que passou por maus bocados.
A cada buraco e amassado que precisava ser tapado, os Arquitetos tentavam imaginar os conflitos que resultaram no estado atual do galpão, enquanto os Zeladores fizeram uma pequena competição de quem coletava um número absurdo de metal esfarrapado em pouquíssimo tempo.
Parecia como um dia de trabalho tão comum que eles não perceberam um veículo luxuoso pousando sem qualquer cerimônia, fazendo a pequena ilha tremer. O estrondo jogou muita poeira, alguns pedaços de rocha espacial e até os próprios funcionários, tristes ao verem que teria mais bagunça para arrumar.
— Olha, você pode ter boas intenções mas eu tô sempre arrumando a sua bagunça! Tem ideia da dor de cabeça que foi lidar com aquele Homem-Sirene? Ele está gritando até hoje na Central de Vigilância!
— Se tivessem me deixado cuidar desse caso antes que o mandassem para lá, ele seria uma excelente adição para o Conselho. Assim como minhas quatro estrelinhas em Detenção!
— Eles iriam causar mais problemas pra gente, isso sim! Como você acha que vai transformar aqueles caras em funcionários do Conselho? Me diga!
— Eu sou um professor Antares, eu transformo a vida das pessoas. Mas claro, você não acredita que eu seja capaz disso, não é? — As correntes novamente o apertaram com força, por acharem que estava desrespeitando sua portadora.
— Não, você não vai me dar o papel de vilã dessa história!
— Mas está parecendo! Sendo a minha única amiga eu ia ficar muito feliz se entendesse a causa, mas está piorando as coisas porque tem medo do que a Diretora vai achar. Você fica tão presa a ela que está virando um cão de guarda que detona tudo!
— Eu sou… Muito mais… Do que alguém que detona tudo! — vociferou Antares, e a partir daquele momento, o impulso jogou a razão pelos ares.
As mãos descontaram a carga acumulada de estresse no volante, e se tivesse perdido a noção do perigo, teria arrancado sem pestanejar. Os pés agitados foram de encontro ao acelerador e a confusão havia sido formada.
O veículo da segurança foi obrigado a manter sua estrutura intacta em velocidades absurdas, jogando Cosmo, as correntes e a própria Antares contra os assentos de couro. Uma quantidade densa de fumaça foi expelida do motor e ofuscou a visão da dupla, mal sabiam o que viria depois.
Tudo que ouviram quando a máquina parou foi o estrondo de metal amassado, pertencente ao portão da garagem que os Zeladores e Arquitetos demoraram para arrumar. Agora, levariam mais alguns séculos para limpar a bagunça.
— Eita, briga de marido e mulher! — apontou um dos Zeladores. — São minhas favoritas!
— Seu idiota! — xingou um dos Arquitetos ao bater na cabeça do colega. — Eles quebraram o portão, vamos ter que arrumá-lo de novo!
— Barraqueira! — falou outro Zelador como uma adição cômica à discussão.
— O que? Mas do que estão… — Antares só percebeu o que tinha feito ao encarar Cosmo, esbaforido como um atleta na esteira em alta velocidade.
Naquele curto período de tempo, ela se sentiu mais forte que qualquer divindade galáctica e ninguém conseguiria detê-la, algo comum de acontecer ao utilizar grandes quantidades de poder. Mas agora viu que o pico de adrenalina resultou em transtorno, bagunça e temor em todos ao redor.
Cosmo tinha o direito de estar assim, pois sabia que a batida foi resultado das palavras que disse para ela. Não havia alguém certo ou errado nesta questão, apenas dois indivíduos tentando lidar com uma situação estressante da pior forma possível.
— A-ai não, porque eu fiz isso? Me desculpa carinha, eu não queria ter exagerado tanto… — Vendo que a portadora não sabia como reagir, suas companheiras de prata soltaram Cosmo que levou uns segundos para abrir a porta do carro e manter o equilíbrio ao tocar no chão.
— Nada disso, eu não deveria ter…
— Acho que estou acumulando muito estresse porque você não faz ideia como é difícil manter a calma perto de alguém tão explosiva quanto a Ursa… — A fala de Antares era rápida e ininterrupta, as palavras subindo pela garganta como se tivessem aguardando por aquele momento há séculos.
— Antares?
— E aquelas três pragas de vestidinho… Eu sou obrigada a ficar de babá porque a última estrela de boa fé que assumiu esse trabalho ficou internada por anos!
— Antares! — Cosmo gritou. Ele não costumava levantar o tom de voz em momentos desnecessários, mas precisava cortar a linha de pensamentos intrusivos — Inspire por quatro segundos e expire por sete, entendeu?
Na mesma hora, ela acatou as orientações do professor e coordenou a respiração para aliviar os impulsos de fazer a primeira besteira que viesse à mente. Cada repetição era lenta e complicada de executar, mas foi guiada durante o processo com muito cuidado e atenção.
O tempo inteiro, Cosmo manteve a postura firme e os olhos focados na mulher, mesmo que um grupo de operários futriqueiros estivesse por perto. O único objetivo era ajudar sua melhor amiga.
— Eu… Eu fiz de novo, né? O lance todo de ficar nervosa…
— Sua respiração está mais controlada que das últimas vezes, pelo jeito estava treinando sozinha.
— Não posso depender da sua ajuda o tempo inteiro, mas… Eu acabo voltando para esse estado cedo ou tarde — respondeu Antares se sentando na frente do galpão detonado, e Cosmo repetiu a atitude para ficar do lado dela.
— Eu não devia ter rasgado o seu colete, sei que ele é mais que uma simples roupa. É algo uma recompensa pela jornada até aqui e também um símbolo da sua luta, ao menos você tem coisas para lembrar enquanto nada se passa aqui dentro… — disse Cosmo ao cutucar as têmporas.
— Não se desmereça tanto, você é a pessoa mais inteligente que eu conheço!
— Eu apenas sou inteligente pelo propósito de ensinar os outros, é a única coisa que me mantém dentro do Conselho. Mudar de profissão ou ser banido para sempre me assusta demais, é por isso que não posso desistir em dar um futuro melhor para os meus alunos!
— Cosmo, você estaria disposto a enfrentar o universo inteiro por fraca… Novatos como eles? O preço é alto demais!
— Eu já cometi muitos erros no meu trabalho, mas nunca fugi da responsabilidade de fazer o certo pelo futuro da nossa organização. É a mesma coisa que um pai abandonar os próprios filhos, se eu desistir agora, não serei digno de ser chamado de professor. Você entende?
Se havia uma coisa que Antares reconhecia no melhor amigo era a vontade implacável de correr atrás dos seus objetivos, confundida por muitas estrelas como uma teimosa que transcendia a influência dos criadores do universo.
Quando tinha uma ideia, não saia da cabeça até que pudesse realizá-la, e se esqueceu de quantas vezes ficou em silêncio durante os pouquíssimos momentos na presença dele, escutando planos e ambições como uma criança contando histórias da própria imaginação aos pais.
Mesmo assim, o vocabulário excepcional e a facilidade de compartilhar informações não eram motivos suficientes para impressionar Antares, visto que todos os funcionários precisavam destas características se quisessem manter a própria relevância dentro do Conselho. O que sempre chamou a atenção foi a reação do olhar castanho.
Ela já ouviu relatos sobre como os olhos reagem perante as coisas que gostamos ou queremos distância, e jurava que os viu brilhar quando o amigo falava dos alunos, sobre educação e como o futuro seria brilhante para as gerações que receberem o direcionamento certo. Para alguém que não era bem visto pelas outras estrelas, tê-la como ouvinte facilitava as coisas.
Cosmo era um rapaz estranho desde que se conheceram, mas Antares sabia que ser um professor trazia sentido para a segunda chance que recebeu do Ancião. Tirar isso era o mesmo que morrer outra vez, sem ambição ou propósito, nada mais que uma ferramenta descartável. O risco de ajudá-lo mudar seu destino valeria alguma coisa?
A hipótese era muito tentadora para ser deixada de lado.
— Olha, eu não posso garantir a sua integridade ou coisa do gênero, mas se prometer que vai fazer as coisas direitinho, acho que posso…
— Antares, olhe aquilo! — apontou Cosmo para o grupo de funcionários.
A mulher não entendeu por que o ato de se virar era tão urgente, mas assim que o fez, percebeu que havia algo peculiar naquela cena. Os Arquitetos e Zeladores , meros espectadores da discussão enfadonha, observavam a imensidão do espaço sideral como se estivessem em um transe profundo.
Independente do que estavam olhando, não se tratava de algo corriqueiro como uma batida de furgões e a perda de mercadorias, porque outras estrelas focaram no mesmo ponto. As atividades no Arquipélago dos Envios foram totalmente paralisadas.
— Que esquisito… Para onde estão olhando?
— Acho que aquilo responde a sua pergunta! — respondeu o jovem, apontando para o céu.
Cosmo e Antares foram seduzidos pelo calor de uma grande luz, cujo tom amarelado clareou as áreas mais obscuras do interior dos galpões. Um humano normal ficaria cego em segundos ao encará-la, mas as estrelas não se importaram. Elas sabiam o que estava acontecendo.
Todos compartilhavam a sensação de não estarem prontos para o que viria a seguir, a ansiedade era tão grande ao ponto de se sentirem como formigas perante a magnitude da coisa. Caso esteja se perguntando qual o motivo de tanta preocupação, é a oportunidade ideal para vermos mais de perto.
A temperatura ficava mais quente à medida que labaredas tremulavam em sintonia, liberando fagulhas ao redor da Grande Morada. Elas envolveram a gigantesca esfera flamejante, criadora da luz que não só chamou a atenção do Arquipélago dos Envios, como todos os funcionários do Conselho.
— O Ancião! — exclamou um dos funcionários. — Ele vai fazer um anúncio!