O Conselho das Estrelas - Volume 01 - Bem Vindos ao Conselho! - Capítulo 10

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Vozes e Lembranças. 

   Com o calor diminuindo aos poucos, Cosmo se lembrou de como o frio fazia o corpo tremer como uma carroça em rua esburacada. Aquilo não acontecia desde que ingressou no Conselho das Estrelas, e como utilizava as mesmas roupas desde a formatura, pensou nas diversas reclamações que seriam feitas aos Tecelões por receber um sobretudo de tecido fino. 

    As coisas foram além disso. O barulho do receptáculo foi alterado para uma melodia agradável, oriunda de um pequeno grupo de músicos alegrando centenas de pessoas ao redor, desde idosos que amavam o som rebuscado das sanfonas até crianças que corriam sem rumo. 

    Ele sabia que não estava mais na Cúpula da Iniciação, mas não se importou com isso. Mesmo que lhe faltassem maneiras de explicar o fenômeno, o receptáculo o levou para uma típica noite de inverno, a época mais animada do ano por um motivo muito especial: a Festa Junina. 

    A celebração ocorria num parque famoso daquela região, com uma área gigantesca para acomodar multidões que gastavam quantias exorbitantes de dinheiro com comida, brincadeiras e toda sorte de apetrechos até o amanhecer. 

    Casais se enfileiraram ao redor de uma grande fogueira no centro do local, e à medida que circulavam, foram agraciados pelo calor e a voz do animador idêntica a um galo tentando alcançar as notas mais agudas. Os rapazes vestiam camisetas xadrez e chapéus de palha na cabeça, enquanto as damas usavam vestidos bordados de cores diversificadas. 

Eles não se importavam em errar a coreografia desde que aquilo fosse divertido. Essa mesma alegria incentivou o professor a dar um passeio e admirar todos os detalhes da festa como se fosse um fotógrafo buscando momentos icônicos para registrar. 

O clima sereno, a sonoridade agradável, o cheiro sedutor de pipoca e outros pratos típicos, todos em colaboração com uma força estranha e familiar que o convidou a chegar mais perto. 

— Essa festa está um máximo! — O rapaz comentou — Faz tempo que não vejo algo assim, meus colegas do Conselho só sabem falar de trabalho e ficar reclamando… 

    Quando falamos de Festas Juninas, é comum imaginar dezenas de barracas espalhadas por aí. Na situação atual, elas residiam em um extenso corredor com atalhos que levavam à área da fogueira. Uma maneira prática de garantir a grande circulação de pessoas e mantê-las entretidas com as outras atrações. 

    As instalações foram enfileiradas em meio ao gramado que exalava um aroma confortável, indicando que foi aparado horas antes da celebração. Todas possuíam a própria coloração e placas indicando onde se vendiam comida ou ingressos para participar da pescaria e da corrida de sacos, gincanas que davam brindes modestos em troca de pontos após o esforço descomunal dos participantes.

    Mas a estética junina não foi a única coisa que chamou a atenção de Cosmo, pois do outro lado do parque era possível ver uma gigantesca tenda circense, com bandeirinhas tremulando com o vento gélido. Além disso, uma série de brinquedos temáticos foram posicionados nos arredores para atrair pessoas e, por questões óbvias, mais dinheiro. 

    Todos ficavam admirados com a belíssima roda gigante logo atrás da tenda, graças às lanternas atreladas à superfície de aço que mudavam a coloração de forma periódica. Quem quisesse ter uma visão inesquecível da cidade era obrigado a esperar na fila e torcer para os ingressos não se esgotarem, e o mesmo valia para o carrossel. 

— Se ao menos eu tivesse dinheiro para comprar uma pipoca… Nem sei mais como usar isso! — Como as estrelas não tinham necessidade de comer, ter dinheiro não fazia muita diferença — Espera, aquela é a barraca de tiro ao alvo? Talvez eu possa dar uma tentativa. 

Um senhor de queixo enrugado e macacão cinzento brincava com o punhado de cédulas na pequena tenda onde se usava uma espingarda de brinquedo para acertar alvos coloridos num determinado limite de tempo. Centenas de brindes foram expostos nas paredes e os melhores seriam entregues àqueles com a mira aguçada.

— Com licença senhor, posso jogar um pouco? Estou sem dinheiro no momento, mas vou te compensar com… — O velho nem se importou de ouvir  Cosmo, era como falar com uma porta trancada. Ele tentou mais algumas vezes até perceber que os esforços foram em vão — Por que não está me ouvindo?

Um impulso levou o rapaz ao meio da multidão, apenas para ser atravessado pelos caipiras como uma presença fantasmagórica. Não importava onde fosse, ninguém percebeu que ele estava ali, e só depois as peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar.

Nenhuma estrela poderia retornar à Terra. Todos que tentassem iriam quebrar  as leis do Pós-Vida e, por consequência, dizimar um planeta inteiro. Foi nesse momento que Cosmo entendeu a razão de estar naquele ambiente e como parecia familiar.  

    — Isso deve ser uma alucinação criada pelo receptáculo — O professor concluiu — Não, parece um plano inspirado nas memórias do Escolhido, mas… Onde ele está? 

    De tanto olhar os arredores em busca de respostas, um pequeno detalhe há alguns metros de distância fisgou seu interesse. O amarelo cintilante da fogueira pairando nas folhas não ofuscou a coloração vívida do laço de cetim sobre o chão, as pontas grandes e arredondadas se assemelhando com uma borboleta escarlate. 

    O rapaz sentiu o aroma suave de morango assim que o pegou, e analisando o tamanho, veio dos cabelos de uma donzela que o perdeu por descuido. Encontrá-la era algo que qualquer galanteador faria para ouvir um simples e encantador “Obrigada”, mas este não era o caso do professor. Algo diferente aconteceu. 

    A pessoa em questão estava alguns metros à frente, com a parte direita do cabelo desarrumada para revelar, do outro lado, um laço da mesma coloração do gêmeo perdido. Cosmo não tinha motivos para se envolver com algo tão trivial, até perceber que aquela pessoa o encarava com um olhar penetrante. 

 — O-oi, você deve ser quem estou procurando! — Mesmo que houvesse dúvidas, o jovem não esperava que sua única chance de entender a situação desse as costas para ele — Moça, não vá embora! — A curiosidade o estimulou a seguir o rastro escarlate, sem imaginar o que aconteceria depois.

…

    Devolver o laço não seria uma tarefa simples com muitos caipiras no meio do caminho para atrapalhar a visão do professor, formando uma sinfonia caótica com seus risos e conversas diversas. Ele pensou em levantar o tom de voz, mas os incentivos do animador desviariam a atenção de qualquer um. 

    Os passos desajeitados refletiram a indecisão de acelerar o ritmo ou verificar a localização da pessoa misteriosa. Identificar o segundo laço escarlate era como procurar uma agulha num palheiro tingido com as cores do arco-íris graças às vestimentas da multidão. As coisas ficaram nítidas quando ambos pegaram um atalho à direita, longe das festividades. 

    O choque térmico atingiu Cosmo em cheio. O corpo paralisou como uma estátua e esfregou os braços pela queda brusca de temperatura. Se não fosse pela curiosidade, cederia à escolha lógica de voltar para a fogueira sem pensar duas vezes. 

A brisa gélida mesclou com a parca iluminação dos postes na entrada do parque, conectados com a rodovia por uma grande ponte de concreto. Para a sorte dele, a dona do laço havia parado de caminhar, mas algo não estava certo…

    Mesmo sem elementos desnecessários no caminho, nada em sua aparência parecia ser tão marcante quanto o segundo laço escarlate. Nenhum detalhe marcante no vestido, se os cabelos eram lisos ou ondulados, as características de uma silhueta opaca vagando sem rumo, mas que seduziram o pobre rapaz de forma inexplicável.

    — Moça! — gritou Cosmo com toda a força que pôde — Eu não sei quem você é, mas é a única pessoa que conseguiu me ver no meio daquela gente! Você sabe como podemos sair daqui? Me diga! 

— Mostre… Deles… Potencial… 

— Mostre o potencial deles? Do que está falando? — Se aquela fala pareceu um tanto confusa, Cosmo teve a confirmação disso no momento que a coisa se virou. 

    Um leve traço acinzentado contornava a massa escura com duas esferas brancas no lugar dos olhos e o laço no lado esquerdo da cabeça. A sombra de uma garota de maria-chiquinha que dava inúmeros motivos para o professor se afastar, e mesmo assim permaneceu firme. 

A curiosidade o instigou a se aprofundar naquela história. 

— Mostre… Deles… Potencial… — A voz era fraca de tom indecifrável, as palavras digladiando com o ser para serem proferidas. Cosmo sentiu-se tentado a seguir a linha de raciocínio. 

— Mostre o potencial deles, certo… — Assim que Cosmo repetiu a sentença, a temperatura começou a esquentar. 

O tom agradável da noite foi substituído por uma miríade de esferas douradas, dando visibilidade para elementos ofuscados pelos postes mal iluminados. Cosmo observou um belíssimo riacho por baixo da ponte, os carros percorrendo a rodovia e as rosas que desabrocham com a fonte de luz inesperada, mas a sombra de olhos brancos não foi afetada de nenhuma forma. 

Era como se aquilo precisasse acontecer, o cenário montado para o encontro de Cosmo com a sombra. Ele não sabia se a construção de ambiente se tratava de um passo importante na liberação do selo ou a influência de uma força maior, mas ficou atento com as palavras seguintes:

— Garanta… Ciclo… Angústia… Quebre…— Uma aura surgiu por trás da criatura, as partículas remodelando a imagem do responsável por aquele sonho peculiar: o receptáculo dourado — Melhor… Futuro…

— Quebre o ciclo de angústia, e garanta um futuro melhor… — Cosmo se aproximou de forma vagarosa, e nem percebeu que o ambiente também estava se dissolvendo. A temática urbana foi tomada pelo amarelo intenso refletido nos vitrais da cúpula na qual conhecia muito bem. 

A incerteza retornou enquanto se aproximava da sombra, pois não tinha garantia que, desta vez, as coisas teriam um resultado favorável. Porém, tinha noção de que a estrela dourada era a fronteira entre a dimensão junina e o Conselho das Estrelas, precisava terminar aquilo que começou. 

— Aquele… Luz… Se Perdeu… Mostre… — No fim do emaranhado de palavras, a sombra recuou, se dissolvendo em partículas escurecidas para que Cosmo pudesse, por fim, encostar no receptáculo.

— Mostre a luz para aquele que se perdeu… — E a partir daquele momento, as coisas voltaram ao normal. 

… 

  Por fim, os rostos de preocupação dos funcionários sumiram junto com a redoma energética. Os nervos estavam aflorando à medida que pegavam câmeras ou preparavam folhas para colocar as técnicas de desenho em prática, pois o selo foi quebrado e o Escolhido iria despertar a qualquer momento. 

    Eles não acreditavam que uma simples estrela conseguiria abrir um receptáculo mandado pelo Ancião, nem mesmo Antares que sempre o apoiou em todas as situações. Os guardas estavam inquietos e queriam finalizar o serviço o mais rápido possível, mas o gesto de mão dela indicou que resolveria isso sozinha. 

— Cosmo, isso foi loucura! — urrou Antares assim que entrou na cúpula. — Tem ideia do que acabou de fazer? 

    Antares não esperava que o amigo fosse respondê-la, pois o olhar estava focado na pessoa que repousava nos seus ombros. Tinha a estatura de alguém jovial, mas pesava tão leve como uma pluma, algo que ajudou o professor a carregá-la sem complicações. 

    Ela não tinha utensílios mundanos que  poluíssem seu visual. Vestia uma simples camisola, mas era tão longa que deixou apenas os calcanhares à mostra. As mangas e a gola tinham o leve tom de cinza, fora a textura macia que somente roupas de renda tinham como proporcionar. 

    A pele morena, o rosto arredondado e os lábios carnudos eram detalhes que, juntos com a infinidade de fios crespos, transmitiram a imagem de uma linda jovem de vinte anos. A dupla de vozes confusas fez com que ela abrisse os olhos devagar, revelando por fim a sua maior preciosidade. 

— Ai, meus, Deuses! — Antares estava a um passo de arrancar os cabelos, mas lembrou que precisava ser a voz da razão — Respira Cosmo, respira! Você tem que tomar muito cuidado porque se alguma coisa acontecer com ela, estamos fritos!

— A pele dela… É tão quentinha… — disse Cosmo inocentemente, e só depois percebeu que a moça em seus braços estava o encarando.

    Quando os olhos do rapaz se encontraram com os dela, nada seria capaz de quebrar aquela conexão. A mente paralisou no mesmo instante, nenhum pensamento seria mais importante que mergulhar na imensidão púrpura realçando uma expressão mista de dúvida e admiração. A cara de um anjo que veio do próprio sol para… 

— S-seu tarado!  — Gritar de maneira estridente e socar a cara de Cosmo… — Não encoste em mim! — advertiu a moça que caiu no chão e se arrastou para uma das paredes do altar. 

— Que parte do “tome cuidado com ela” você não entendeu? — perguntou Antares em sinal de reprovação.

— Eu só disse que a pele dela era quente e… 

— Que baixaria é essa? — Antares aproveitou a brecha para dar um tapa no pobre rapaz — Isso não é coisa de se falar para uma mulher! A Dona Cleonice não te ensinou isso?

— Que droga Antares! É a segunda vez que levo uma surra por isso!  

— Segunda vez? Eu não conhecia este seu lado Carinha, estou decepcionada! 

— O-onde eu estou? Quem são vocês? M-meus piercings! Onde estão os meus piercings? — A respiração da garota de cabelos crespos estava agitada, e acelerou ao passo que procurava os itens metálicos que outrora estavam nas orelhas, nariz, boca e na região do busto. 

    Cosmo e Antares perceberam que ficar discutindo não os levaria a lugar nenhum, ainda mais com a garota perdendo a cabeça enquanto procurava os piercings. Era hora de deixar o orgulho de lado e serem os profissionais nos quais sabemos quem são. 

— Para trás seus tarados! Minhas unhas ainda estão grandes e posso rasgar as suas gargantas! — A jovem ameaçou, sem pensar se tinha a real capacidade de infligir danos a alguém. 

— A gente tem cara de que vamos te machucar? Fique tranquila, você está segura com a gente. — afirmou Antares. 

— Acho que começamos com o pé esquerdo. Que tal tentarmos de novo? — disse Cosmo estendendo a mão para a jovem se levantar — Qual é o seu nome? 

— O meu nome é Andreia… 

— Opa, é um belo nome, garota! Eu sou Daniela, mas todos aqui me chamam de Antares. Esse aqui… é meu ajudante! 

— Ajudante? Não tente levar crédito por algo que eu fiz! De toda forma, eu me chamo Cosmo. É um prazer finalmente conhecer uma Escolhida! 

— Escolhida? Pra quê?

— Bom… É uma longa história, mas pode deixar que vamos explicar da forma mais tranquila para você, não é mesmo Antares? 

— Cosmo… Acho que temos um probleminha… 

    Um calafrio percorreu a espinha dos três quando olharam nos arredores da cúpula, o vislumbre do exército de olhares famintos que estavam os cercando. Parecia que todo o Conselho das Estrelas havia se reunido com um objetivo em mente, e alguns fariam de tudo para conquistá-lo. 

— Alguém chama o nosso gestor, estou tendo um infarto mesmo estando morto! — disse um membro do Arquipélago dos Envios. 

— Ela é tão linda! Quero colocá-la num potinho e nunca mais soltar! — elogiou uma integrante dos Artistas.

— Ocê pirou de vez? Ela será da Tropa de Exploração! Ela vai fazê um bem danado pra equipe! — retrucou outro funcionário.

— Queremos a Escolhida, passem ela pra cá! — O clamor de todas aquelas estrelas só podia significar uma coisa: mais confusão. 

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