O Conselho das Estrelas - Volume 01 - Bem Vindos ao Conselho! - Capítulo 13
A Fuga (Parte 1)
De todas as experiências que Andreia teve no plano mortal, jamais imaginou que se tornaria uma estrela, muito menos teria a obrigação de moldar o futuro da galáxia. Seu único objetivo era fugir daquele sonho fantástico e de três garotinhas ameaçadoras.
Apesar da respiração ofegante, sentiu que podia correr três maratonas sem a necessidade de uma pausa. O instinto de sobrevivência a fez desconsiderar o visual elegante das pontes suspensas no espaço sideral, se conectando a ilhas no formato de asteroide e comportando os mais diversos tipos de alojamentos.
E é claro, incluindo multidões de funcionários alvoroçados que fariam de tudo menos ajudar a garota de camisola na grande fuga. Não importava o local, os olhos sedentos e a respiração ofegante pertenciam àqueles que teriam um chilique se não recebessem qualquer migalha de reconhecimento. Correr estava fora de cogitação.
— Oi, seu cabelo é tão lindo! — disse uma menina de cabelos loiros presos num rabo de cavalo rosa. — Eu posso mexer nele? Por favor!
— É verdade que consegue ler mentes? — questionou um homem baixinho com jaleco de cientista — No que estou pensando agora?
Se ficasse prestando atenção em solicitações alheias, estaria mais perto de um destino cruel proporcionado pelas Ursas Menores. Não havia outro jeito além de entrar no meio da multidão e abrir caminho, sem se importar com toda sorte de reclamações.
A parte mais difícil não foi o trajeto sinuoso pelo aglomerado de pessoas. Eram os gritos de um exército revoltado, ansioso, ponderando sobre o futuro da corporação e o grande poder que residia nas mãos da morena.
Os funcionários não precisaram falar nada. Ela iria assimilar tudo de qualquer forma.
Por que ela quer fugir? Não entendeu ainda que está morta?
Vamos lá, use seus poderes para alguma coisa!
Sua fraude! Nem pense em dar no pé sem mostrar pelo que veio!
O objetivo principal foi ofuscado, o caminho parecia confuso e não havia um lugar longe o bastante da cacofonia mental. Cada sentença acertava a cabeça de Andreia como flechas vindas de todas as direções, e o corpo se recusou a mover, mesmo que recebesse comandos para o extremo oposto.
A postura estava curvada para baixo, pois não conseguia encarar o rosto dos “admiradores” sem o impacto de seus desejos e ambições. Havia se tornado presa em um ninho cheio de predadores, e era questão de tempo até que fosse consumida por completo.
Mas o pior estava por vir, e sabia onde encontrá-la…
…
— Eu escuto passos, perto daquele canteiro de margaridas! — afirmou a ursa de cabelos esverdeados, depositando confiança na própria audição. — Ela está tentando correr, mas treme como uma barata tonta!
— Sim, eu percebi — respondeu a ursa das mechas vermelhas, forçando a vista como se pudesse enxergar através da multidão — Tem muitos idiotas no caminho dela, o que é de grande ajuda para nós!
— Maravilha, aqueles manés nem vão saber o que os atingiu! — completou a ursa do mechas azuladas, junto ao olhar afiado e um sorriso malicioso.
No topo de um gigantesco farol listrado, o trio de ursas cochichavam sobre as ideias mais mirabolantes de realizar uma entrada triunfal. O simples fato de estarem ali fez os funcionários tremerem como batedeiras operando na potência máxima, e à medida que buscavam por um local seguro, torciam para que a curiosidade delas não resultasse num pique-esconde mortal.
— É agora, vamos arrasar! — Em uníssono e com uma trilha de sorrisos largos, as meninas saltaram em direção ao canteiro florido, onde o redemoinho de operários tentavam mendigar a atenção de Andreia.
Os primeiros que perceberam as “estrelas cadentes” acenderam a chama da urgência nas pessoas presentes nos arredores, que saíram correndo em prol da própria segurança. Elas sabiam o que aconteceria assim que elas posassem…
Fuja!
Salvem suas peles!
As filhas do demônio estão vindo!
Ver que as pessoas se dispersaram fez Andreia suspirar de alívio e abrir um sorriso determinado, já que não teria fanáticos inconvenientes no caminho. Porém, foi a última a ver que suas anfitriãs estavam mais perto do que nunca. Um tremor cortou o silêncio do ambiente, lascas de granito voaram junto com as folhas e pétalas de margarida quando atingiram o solo.
A Ursa de cabelos azuis, mantendo os olhos fixos na morena, estufou o peito e direcionou toda a sua energia para as cordas vocais, tendo o objetivo de surpreender todo mundo com sua peculiaridade simples, porém catastrófica.
— Te encontrei! — Um termo comum que ninguém imaginava ter a mesma intensidade de quinhentos megafones. O impulso sonoro se lançou contra a jovem como um raio caçando uma árvore ou desavisado para eletrocutar, o que resultou na cacofonia de gritos e pés batendo por todos os lados.
— Espe…
O impacto foi tão inesperado que Andreia não teve a mínima oportunidade de reagir, e num piscar de olhos, foi jogada para trás enquanto uma parcela do canteiro era reduzida a fragmentos estelares. Ao ver que havia despencado outra vez, desejou que mais uma nuvem fofa pudesse salvá-la de outra queda horrorosa, mas isso não foi necessário.
Colidiu com algo tão macio quanto o carrinho de travesseiros, mas a superfície se retraiu em decorrência do peso da menina, e voltou ao estado de origem em poucos segundos. Assim que abriu os olhos, percebeu que pisava em uma extensa trilha de fumaça colorida, cujas partículas grudaram na camisola.
— Isso se parece com uma… estrada? Aí não… — O perigo que Andreia estava correndo só foi reconhecido quando escutou uma buzina a metros de distância. Ela iria descobrir que as estradas nebulosas não eram adequadas para estrelas, a menos que quisessem ser atropeladas por um furgão cheio de mercadorias.
Era possível ver o motorista discutindo com o passageiro ao lado, sem dar importância para qualquer objeto ou indivíduo no meio do caminho. A garota olhou para os arredores na esperança de encontrar terra firme, mas não havia nada além do emaranhado de rodovias coloridas e veículos de modelos variados.
Questionar a lógica por trás daquela cena estava fora de cogitação, por isso, reuniu o máximo de coragem possível e saltou em direção ao desconhecido, segundos antes de se tornar a vítima de dois funcionários irresponsáveis. Contou com a sorte para que caísse em uma via pouco movimentada, ou pelo menos, no assento de um veículo qualquer
— Tudo que faço é trabalhar como um cão e não tenho ninguém para desabafar… Se eu tivesse uma namoradinha… — disse um funcionário dirigindo por uma rodovia mais abaixo. De forma conveniente, o destino ouviu suas preces quando a Escolhida caiu no banco do passageiro. — Minha nossa, obrigado Universo!
— D-dá pra acelerar aí? Preciso sair desse lugar antes que…
— Oi Xuxuzinho! — gritaram a ursa dos cabelos azulados num andar superior, as outras irmãs rindo feito hienas zombeteiras — Você não pode fugir para sempre!
O rapaz de cabelos encaracolados e camiseta perolada virou a cabeça por um breve momento, apenas para se sentir paralisado com a situação na qual foi inserido; estar na mira das Ursas Menores. A possibilidade de uma finalização horrenda faria o carro parar, mas aquele era o momento certo de salvar a própria pele, a qualquer custo.
— Ei, não fica parado não! — gritou Andreia ao dar um tapa no motorista — Pisa fundo!
— C-certo! — Sem pensar duas vezes, o homem enterrou o pé no acelerador — Não vou deixar que levem a minha futura esposa!
Faíscas coloridas saíram dos propulsores traseiros do automóvel, que desatou mais rápido que um rato fugindo do felino perseguidor. No entanto, essa iniciativa não acovardou as três ursas, apenas estimulou a vontade de causar mais confusão.
Seguiram a dupla de fujões por alguns quilômetros até chegarem à borda da ilha-meteoro, onde deram as mãos e saltaram na direção da estrada fumacenta. Quando uma grande força é aplicada, ela tende a se deformar para absorvê-la, até retornar ao estado de origem com um impulso proporcional. Como as meninas estavam caindo em alta velocidade, a elasticidade iria jogar todos os carros para o alto, e foi isso que aconteceu.
A garota se separou do herói conveniente durante a queda, e levou alguns minutos até que sentisse o piso gélido e a poeira sobre o rosto outra vez. Estava em terra firme e precisava seguir em frente, mesmo que precisasse desconsiderar as pontadas agudas nas costas e a rigidez pelo corpo todo.
O local se tratava do monumento dedicado a uma mulher de cabelos castanhos com um vestido inspirado nos trajes gregos. A clavícula exposta, duas alças conectadas aos ombros carnudos e listras douradas na região da cintura. A estátua tinha pequenas esferas que partiam de suas mãos, o que instigou a curiosidade dos observadores em saber se aquilo era a essência primordial da galáxia, ou simplesmente areia.
— Poucas pessoas tiveram a honra de conhecer o Ancião, e os conspiracionistas afirmam que se trata de uma mulher glamourosa vivendo num campo florido dentro da Grande Morada. Não temos provas concretas sobre tais suposições, mas devemos apreciar que tal representação é impressionante! — O instrutor estava prestes a seguir com o conteúdo até que viu Andréia correndo, os espectadores indo ao delírio com a aparição inesperada.
— Okay gata… Vai ficar tudo bem! — sussurrou a garota depois que se escondeu por trás do monumento. — Elas nem vão saber que me escondi atrás dessa estátua!
— Irmãs, eu achei a fujona! — exclamou a ursa de cabelo vermelho, indicando que as três haviam chegado na ilha. — Ela está atrás daquela estátua!
— Mas que mer… — Andreia fugiu na mesma hora que ouviu o grito assustador da ursa, forte o bastante para reduzir a estátua em fragmentos rochosos. Ela estava ficando sem opções, pois as garotas arruaceiras sempre arranjam uma maneira de encontrá-la.
…
— Lá está ela! Mais rápido Antares! — berrou um jovem professor de sobretudo elegante, contagiado pela adrenalina.
— Mais rápido que isso? Que tal você assumir o volante dessa lata velha? — retrucou sua belíssima colega de mechas alaranjadas, tentando pilotar uma geringonça que nem deveria estar operando.
Os propulsores engasgavam de forma periódica, e em momentos inoportunos, aceleravam ao ponto de interromper o fluxo do trânsito local. O uso daquela coisa resultaria em penalidades severas, mas Cosmo e Antares não se preocuparam com isso. Manter a Escolhida longe do perigo vinha em primeiro lugar.
— Jovem Andreia, vai ficar tudo bem! — disse Cosmo de forma reconfortante, mesmo que precisasse levantar o tom de voz. — Apenas respire fundo e mantenha a calma!
— Eu não preciso da sua ajuda! — respondeu a morena esbarrando em todas as estrelas no caminho enquanto passava por uma estação circular, onde muitas aguardavam o ônibus para irem aos respectivos postos de trabalho. — Eu vou mostrar que posso me virar sozinha e voltar para minha antiga vida!
— Muito bem então, mas acho melhor você ir para a direita antes que elas te vejam!
Ele acha mesmo que darei ouvidos? Eu vou ir pela esquerda! — E assim o fez, correndo na direção da borda.
— Cosmo! Você está tentando matá-la por acaso? — retrucou Antares.
— Antares, entre na faixa da esquerda e acelere, não podemos perdê-la de vista!
A mulher de colete arregaçado não fazia ideia do que seu amigo estava planejando, mas torceu para que a briga de momentos atrás não tenha soltado alguns parafusos de sua cabeça. A dupla pegou o desvio que contornava a ilha, esperando o momento que Andreia fosse saltar na direção do calhambeque de procedência questionável.
O problema era que estavam um pouco atrasados…
— Aí está você, Fedelha! — O coração de Andreia gelou ao escutar a voz da ursa de cabelos azuis logo atrás. O tom infantil e afinado que causava temor nos funcionários ao redor — Você realmente vai embora sem se despedir?
— Queremos uma lembrancinha pelo pouco tempo que passou conosco! — A garota das mechas esverdeadas estendeu os braços com o pedido, deixando um par de garras afiadas em exposição — Tá na hora de um abraço de urso!
— Pra… P-para… — As palavras não queriam sair da boca de Andreia. Não conseguia pensar em nada além de que, em alguns segundos, descobriria a sensação de ser picotada em milhares de pedaços.
Ela havia perdido o controle do próprio corpo, que recuou até quase tropeçar na beira da ilha. Mesmo que houvesse uma estrada de nebulosas há alguns metros de distância, nenhum lugar do Conselho das Estrelas era seguro. Se insistisse em correr, estaria adiando o inevitável.
Animadas em concluírem a missão, o trio se jogou na direção da Escolhida e deixaram os caninos e garras à mostra para uma “finalização carinhosa”. Antares, ciente do perigo, afundou os dois pés no acelerador, com a esperança que o carro saísse voando para atropelar o trio em grande estilo. Aquilo era pedir por um milagre.
— Nós não vamos… — Antes que o desespero tomasse conta da segurança, uma mancha cortou o vácuo espacial e saltou na direção da ilha. Nem mesmo as Ursas Menores acreditaram no momento que ela aterrissou com muita sutileza.
— Isso… Termina… Agora! — A voz da mulher que se colocou na frente de Andreia tinha uma entonação suave, mas com a imponência necessária para fazer o trio de pestinhas recuar.
Ninguém era tolo o bastante para não reconhecer aquele blazer acinzentado e a saia preta, o figurino executivo em contraste com a assustadora capa de urso nas costas. Algumas mechas pareciam saltar do cabelo amarrado pelo rabo de cavalo, indicando que travou uma jornada sem precedentes até chegar ao destino.
As bochechas estavam rosadas e a respiração ofegante, gestos incomuns para uma constelação que, até o momento atual, nunca demonstrou qualquer característica semelhante aos mortais além da fisionomia. Isso foi o detalhe que menos impactou as Ursas Menores, pois sabiam que os caninos expostos e as pupilas tremulando como brasas infernais era o sinal de que estavam prestes a receber a maior punição da galáxia.
Aqueles que ainda tinham forças ou coragem suficiente de mover um simples músculo saíram da estação sem olhar para trás. Com sorte, nenhum azarado seria vítima da fúria característica de sua infame Diretora.
— Eu deixo vocês sozinhas por alguns minutos e é assim que desejam se comportar? — A Ursa Maior bufou, com os olhos fixos nas garotas o tempo inteiro. Não haveria brechas para que pudessem fugir, apenas aceitar o que estava por vir — Vocês são uma vergonha para a minha filial e ao Conselho como um todo!
— Mamãe, n-não é o que parece! — respondeu a ursa vermelha, colocando as mãos sobre o rosto a fim de esconder as bochechas rosadas.
— Nós só queríamos trazer a Escolhida até seu escritório, m-mas a culpa não é nossa se ela provocou esse caos… — complementou a menina dos cabelos azulados.
Tudo que Andreia pôde fazer era ser a espectadora daquele momento constrangedor enquanto o cérebro insistia em encaixar as peças de um quebra-cabeça sem conclusão. Depois de tudo que presenciou até aqui, era de se esperar que o corpo fosse colapsar e seria impossível de seguir adiante, mas não foi o caso.
A sensação de ser lançada a céu aberto por estradas de poeira espacial, os diversos pensamentos externos circulando pela mente, aquela experiência poderia ser tudo, menos um sonho. Já era tarde para ouvir o barulho conveniente do despertador, pois estava compreendendo aos poucos o lugar onde se encontrava, e o poder fantástico na palma das mãos. Ela só precisava aprender a como usá-lo.
— Não fique ai parada, entre no carro! — suplicou Cosmo, assim que o carro estacionou na borda da estação.
— Nós vamos te manter segura — completou Antares. — Confie na gente, tudo bem?
Entre tantas realizações, houve o dilema sobre quem Andreia iria depositar a sua confiança. Não tinha a obrigação de acreditar que Cosmo e Antares fossem aliados, mas foi obrigada a decidir quando viu as perseguidoras infanto-juvenis distraídas com a ursa amedrontadora.
O pequeno lema de sua avó, uma senhora de temperamento alto e muito sábia, foi o bastante para fazê-la mover as pernas outra vez. A agitação voltou a circular no corpo da garota, à medida que as memórias repetiam a frase “Se você tem tempo para se preocupar, então corra!”
— Bem, o que eu tenho a perder agora? — disse a garota ao correr na direção do veículo, sem olhar para trás.