O Sétimo Espelho - Capítulo 01
Fantasmas no espelho
— Melissa, eu preciso desligar. Vamos conversar sobre isso mais tarde e… — O som da chamada encerrada fez com que Heitor conferisse o celular uma segunda vez. — Alô? Mas que merda!
— Problemas no paraíso? — Ricardo sorria, enquanto manobrava o carro.
— Me dá um tempo, Cruz. Você disse que a vítima já era conhecida na central, né?
— Não tanto quanto você.
O policial apontou para alguns rostos familiares do outro lado da rua. Aglomerados na frente do prédio, uma pequena multidão de repórteres montava seus tripés e câmeras, entrevistando os moradores do condomínio enquanto aguardavam a chegada do inspetor responsável pelo caso.
— Cambada de urubus! — Cordeiro apertou o nó da gravata depois de ajeitar os cabelos negros diante do retrovisor. — Só preciso de cinco minutos a sós com o filho da puta que tá me vendendo pra esses carniceiros.
— Tô trabalhando nisso, chefe.
O investigador estacionou a viatura descaracterizada em um ponto estratégico, mas não adiantou muito. Os dois foram engolidos pelos flashes e uma enxurrada de perguntas antes mesmo que pudessem colocar os pés no meio fio. Ricardo acenou para um dos policiais militares que faziam a contenção do local e prontamente, um grupo de homens fardados liberou o caminho até a portaria do prédio.
— Preparem as canetas, pessoal. A homicídios fez a boa e mandou uma celebridade desta vez.
Heitor arrumou o paletó e passou sob a fita amarela a passos largos, ignorando a provocação do oficial. Cruz, que havia deslizado para o lado, a fim de ficar entre os dois policiais e separar uma possível confusão, esperou até que o companheiro se afastasse o suficiente para sorrir e dizer:
— Eu também sou uma celebridade, sabia? O investigador mais bonito do DHPP. Você não prefere um autógrafo meu?
O policial militar empalideceu, baixou a cabeça e negou a oferta com um pedido de desculpas engasgado.
— Que peninha. Bom, eu preciso ir agora, mas nos vemos depois. — Piscou, antes de correr até a entrada.
Cordeiro estava conversando com uma das moradoras do primeiro andar quando ele apareceu.
— O que você ficou fazendo lá fora?
— Ah, você sabe. Tava só cumprimentando um fã.
— Sei… — O inspetor falou por cima do ombro, pegando o papel das mãos da mulher. — Muito obrigado senhora, entrarei em contato caso haja necessidade.
O vizinho do lado também quis contribuir com a investigação, mesmo que seu relato parecesse mais um desabafo do que qualquer outra coisa.
— Vamos? O apartamento da vítima é no terceiro andar. — Ricardo gesticulou quando terminaram. — Bom que o treino de pernas de hoje tá pago.
Cordeiro afrouxou o colarinho da camisa ao chegar no último degrau. O corredor estreito estava tomado por vizinhos curiosos, rostos tensos espiando pelas frestas das portas. Alguns murmuraram, outros se esconderam ao notar seu olhar afiado. De uma delas, porém, alguém o encarou de volta e um arrepio ominoso subiu por sua espinha.
A silhueta desapareceu atrás da porta, não se preocupando em fechá-la. Aquele par de olhos verdes havia o convidado a entrar. Era provável que fosse apenas uma testemunha, mas também existia a hipótese de ser outra coisa.
Usando a caneta, aumentou o vão, fazendo com que a luz do corredor atravessasse o cômodo. Até onde podia ver não havia móveis e a janela estava fechada. Parecia que ninguém morava ali, contudo, um cheiro doce tremulava as barras da cortina, levantando a poeira vermelha acumulada no chão.
— Alguma coisa errada? — Cruz espiou a sala vazia por cima do ombro do outro. — Nosso “apê” é o do lado.
— Talvez… Consegue descobrir se o 333 está pra alugar?
— Claro, me dá um minuto.
Heitor deixou o companheiro no telefone e seguiu para o apartamento da vítima. Não precisou mostrar suas credenciais para que o policial o deixasse entrar. “Pelo menos para isso…”, resmungou mentalmente sobre a fama repentina e pouco desejada.
A casa abafada, estava impregnada com o perfume barato da vítima. Um aroma doce e bem mais enjoativo do que o que havia acabado de sentir. “Então está vindo daqui”, pensou, antes de entrar.
— Ela foi encontrada no quarto. — O perito que analisava o sofá apontou para a segunda porta à direita.
Cordeiro acenou, calçando os protetores de sapato e as luvas, mas não foi direto até lá. Havia algo de interessante logo na porta. Além da chave principal e da tetra chave, um cadeado ainda estava preso na trava de metal.
— Foram os bombeiros que arrombaram isso aí. — Ricardo apareceu atrás dele.
— O bairro é meio barra pesada, mas não notei esse tipo de coisa nos outros apartamentos. Ela tinha algum motivo específico?
— Mania de perseguição — explicou — ela ligou mais de vinte vezes para a central só na última semana.
Heitor caminhou pelo corredor em silêncio, registrando cada detalhe. As janelas trancadas por dentro, o prato de comida que ainda estava dentro do microondas e a máquina de lavar cheia de roupas cheirando a amaciante. “Não parece alguém que estava prestes a tirar a própria vida”.
— Ela tinha histórico psiquiátrico? — disse por fim.
— Não, mas os vizinhos falaram que era comum ouvir a vítima gritando no meio da noite sobre fantasmas que saíam do espelho ou coisas do tipo. Teve até uma situação em que um dos moradores do terceiro andar arrombou a porta preocupado. Mas ela o escorraçou a pauladas. Depois disso eles não se importaram mais em checar.
— Alucinações, então? — murmurou, antes de entrar no quarto principal.
Encostado na parede, o inspetor reconstruiu a cena baseado nas fotos tiradas pelo legista. Diante dele, praticamente podia enxergar a idosa vestida com um maiô e uma touca de plástico. No pulso, um relógio antigo que havia parado às três e meia. Esse foi um toque inesperado, mas tratou de afastar os pensamentos.
Cruz assobiou ao atravessar a porta e dar de cara com a parede repleta de símbolos estranhos:
— Moraes vai pirar. Mais uma que vai pra conta dos rituais.
— Não… — Heitor passou a mão pelos cabelos, observando com uma expressão distante os desenhos que pareciam olhos arregalados e sombras que escapavam pela janela. — Isso aqui é diferente.
No último mês, algo estranho havia começado a circular pela internet. Pessoas falavam de encontros com “sósias”, criaturas que, segundo os relatos, tentavam matá-las, ou apareciam em suas casas para desenhar símbolos estranhos nas paredes. O medo se espalhou como fogo em palha seca, e logo começaram a pipocar teorias de cultos, rituais e desaparecimentos misteriosos.
Na manhã em que as fotos da cena do crime vazaram, o pânico ressurgiu com força. Aquela idosa, sozinha em um apartamento na periferia, com símbolos pintados na parede, era a peça que faltava no quebra-cabeça de terror.
Moraes estava decidido a dar uma resposta rápida e até sugeriu que, na pior das hipóteses, Heitor encontrasse uma maneira de enquadrar o suicídio dentro de uma narrativa de desespero. “Uma senhora já com idade avançada, teve seus problemas psicológicos agravados pela solidão e abandono familiar”, propôs. A explicação da morte prematura causada pela angústia parecia ser suficiente para driblar as especulações fanáticas religiosas levantadas pela mídia.
Esse era o tipo de situação em que o ponto final já parecia escrito, mas o inspetor sabia que o mistério precisava ser resolvido de qualquer forma, com ou sem o drama que se arrastava pelas redes sociais.
— Por que cobrir a tv com um lençol? — Cordeiro murmurou, andando pelo quarto.
— Eu fazia isso quando era criança e chovia forte. O reflexo dos trovões sempre me assustava. — Ricardo respondeu como se a pergunta fosse para ele.
— Mas não estava chovendo. — Ele tirou algumas fotos do arranjo antes de puxar o pano. — Nem ontem, nem hoje.
Cruz estava parado na porta o observando com atenção. Nunca escondeu a admiração que sentia pelo colega de farda e era nesses momentos — em que os olhos azuis, normalmente frios, cintilavam — que agradecia por poder trabalhar ao seu lado.
Heitor foi até a cama e se abaixou. Se estivesse deitado, conseguiria ver o corredor e a porta que dava para o banheiro através do reflexo do espelho na televisão. A posição do objeto não parecia mera coincidência e uma lembrança amarga passou por sua mente.
— Ela estava vigiando…
— Vigiando? — Ricardo repetiu, levantando uma sobrancelha.
Ele não respondeu, apenas levantou e saiu do quarto, sendo seguido de perto pelo outro investigador. Observou a sala perfeitamente limpa e arrumada. Não havia sinais de entrada forçada ou luta nesse cômodo. A janela central, estava trancada por dentro e um pedaço de cabo de vassoura foi adicionado de cada lado do trilho, para garantir que ela não seria aberta. A mesma coisa na cozinha e nos quartos.
— Todo mundo que entrou aqui estava usando EPIs? — perguntou ao perito que continuava trabalhando no sofá.
— Tirando os bombeiros que atenderam ao chamado, acredito que sim.
— No que está pensando, Dominó? — Ricardo se apoiou nos ombros de Heitor.
— Já falei para não me chamar assim, seu cuzão.
Cordeiro afastou o homem antes de agachar no corredor. Ao contrário do restante da casa, uma poeira avermelhada salpicava o rodapé entre o banheiro e o quarto onde a vítima foi encontrada. O padrão de pegadas estava distorcido demais para que pudesse ser usado na investigação, mas o fato de existirem em uma casa tão limpa, por si só, era algo digno de nota.
Heitor passou a mão entre os pisos, juntando um bocado do pó entre os dedos:
— Quando aquele vizinho disse que os surtos começaram?
— Aquele tagarela? Ele falou que foi um pouco depois que os novos donos do 333 começaram a reformar o apartamento. O morador do andar debaixo insistia que o problema de infiltração vinha de lá, mas eles acabaram descobrindo que era a tubulação do apartamento da Madalena que estava comprometida.
— Hum… — Se levantou, indo até o banheiro. — Deixa eu adivinhar. Ela não deixou eles entrarem.
— Bingo! Mas o síndico tinha a cópia da chave dos moradores mais velhos, por motivo de segurança e levou os encanadores escondidos enquanto a senhora não estava em casa. Só que ela chegou, viu eles lá dentro e surtou.
A janela deste cômodo foi completamente bloqueada por ripas de madeira pregadas ao batente. O trabalho deve ter sido feito às pressas pois o restante dos sarrafos, pregos e um martelo ainda estavam jogados pelo chão. Também havia um punhado de areia vermelha e cacos de piso espalhados sobre o lavatório e ao redor dele.
— Isso foi antes ou depois do vizinho ter arrombado a porta? — Heitor deu algumas batidas na parede, que respondeu com um som oco. Reparou também que o armário sobre a pia estava desnivelado e não encostava totalmente no piso.
Ricardo deslizou pela tela do celular antes de responder:
— Parece que foi na mesma época, mas o incidente com o síndico veio primeiro.
— Entendi. — O legista mandou alguma coisa?
— Só os resultados extra oficiais. — Se aproximou. — Ele não encontrou indícios óbvios de envenenamento. Também não haviam traumas visíveis.
Heitor ouviu em silêncio, mas sua atenção já estava em outro ponto.
— De acordo com o histórico médico, — continuou — a Madalena fazia uso contínuo de remédios de pressão, o que poderia corroborar a hipótese de ataque cardíaco. Mas vamos ter que esperar o resultado oficial para ter certeza.
— Essa morte foi qualquer coisa, menos suicídio. — Franziu a testa enquanto passava a mão pelos azulejos trincados na parede.
— O que você encontrou? — O investigador se abaixou, acompanhando a direção em que o outro tirava mais fotos.
— Isso parece pó de tijolo, não parece?
Cruz passou a mão no chão, depois esfregou os dedos:
— Você acha que ficou aqui desde a época da reforma dos encanamentos?
— Não mesmo — Heitor respondeu, abrindo a porta do armário de remédios que ficava em cima do lavatório. — Quais as chances de uma pessoa tão caprichosa esquecer de limpar logo o banheiro?
— Talvez fosse pesado demais para uma idosa sozin… Ei, o que você está fazendo? Vai acabar se machucando com os cacos.
— Coloca a mão aqui. — Cordeiro ignorou a preocupação, puxando o braço do outro até o vão entre a parede e o móvel de madeira.
Ricardo piscou algumas vezes antes de perguntar:
— Uma corrente de ar?
— Me passa esse martelo, por favor.
Cruz pegou o objeto e o entregou ao inspetor. Usando a parte detrás da ferramenta como uma alavanca, forçou a estrutura até que ela cedesse, revelando um buraco de quase meio metro escondido atrás do móvel.
— Mas que porra é essa? — Ricardo arregalou os olhos.
— Segura a lanterna pra mim. — Heitor empurrou o objeto antes de sair correndo.
O companheiro não teve muito tempo para se preocupar com o rompante. No minuto seguinte, escutou um barulho, a parede se moveu e um rosto conhecido sorriu satisfeito ao lado de mais um completamente apavorado no outro lado do vão.
— Parece que achamos nosso fantasma.
Mais tarde, descobriram que o homem escondido no apartamento ao lado era o síndico. Ele entrou antes da polícia chegar ao local para conferir se havia deixado algum rastro do buraco, mas não conseguiu sair há tempo.
Ele acabou confessando que durante uma das visitas de rotina, ouviu a idosa murmurar sobre algo valioso que recebeu e que estava guardado debaixo do colchão. O homem planejou investigar na próxima, mas a senhora ficou cada vez mais reclusa. Quando o dono do 333 o procurou para supervisionar a reforma, viu a oportunidade, afinal, conhecia a planta do prédio e sabia que os apartamentos dividiam a parede do banheiro.
No entanto, jurou que a vítima já estava morta quando atravessou o buraco e por isso ligou para os bombeiros. Também confirmou que apenas ele possuía as chaves do apartamento em reforma e que foi o único a entrar lá naquele dia e no dia da investigação.
Sentado em sua baia, Heitor tamborilava a caneta entre os dedos, resmungando:
— Mas os olhos daquele cara eram castanhos…
— Infarto fulminante… Bom, não era exatamente o que eu esperava, mas vai dar para usar a violação de domicílio na história. — Moraes interrompeu seus pensamentos ao entrar na sala. — Consegue me enviar o relatório até amanhã de manhã? Preciso preparar essa nota há tempo de sair no jornal.
— Vou fazer o possível — suspirou.
— Considero feito, então. — Acenou dando meia volta. — Bom trabalho pessoal.
— Bom trabalho, meu ovo. Como eu vou terminar isso aqui até amanhã de manhã? — Heitor apertou as têmporas encarando as várias páginas que compunham o resumo simplificado do caso.
— “Palma! Palma! Não priemos cânico! — Ricardo colocou duas canecas cheias de café sobre a mesa. — Eu, o investigador mais bonito do DHPP irei te defender, mas só se me contar como descobriu sobre o buraco na parede.
Cordeiro retribuiu a gentileza com seu habitual olhar de desaprovação e se não fosse pelo café, teria respondido com alguma obscenidade.
— O pó de tijolo. Era bem estranho que estivesse só no banheiro e no corredor. O armário fora do lugar, os pisos da parede trincados e a corrente de ar me deram uma boa ideia da onde tudo aquilo vinha. Eu vi a mesma poeira vermelha no apartamento do lado.
— Caramba… — O investigador sentou na beirada da mesa de Cordeiro. — Você também descobriu porque ela estava usando roupa de banho?
— Eu acho que em algum momento ela notou que o problema vinha do banheiro e a sensação de estar sendo observada fez com que começasse a usar o maiô. Naquele dia ela deve ter sido surpreendida pelos assaltantes enquanto se preparava para tomar banho.
Ricardo esfregou o queixo, parecia pensar em algo complicado, mas se contentou em apenas tomar um gole do café.
— Os sons, os reflexos na televisão, os pisos trincados e as frestas na madeira do armário. Era tudo real. Ela deve ter visto as reportagens sobre os casos de rituais e tentou avisar a polícia, mas quando não acreditaram a Madalena tentou desenhar os símbolos para chamar a atenção. — Heitor completou a explicação.
— Então você acha que esse foi o motivo por trás dos desenhos na parede?
— Não tenho certeza, mas eu apostaria nisso.
— Bom, se foi isso ou foi loucura, não dá para julgar. Qualquer pessoa que estivesse dormindo e do nada acordasse com um par de olhos encarando pelo reflexo também ficaria meio perturbada.
— É… Acho que sim. — O inspetor desviou o olhar.
— “Tem uma explicação lógica para tudo”, não é isso que você sempre diz, Cordeiro? — Moraes voltou para a sala trazendo uma lata de energético. — Acabei de receber uma ligação do prefeito
Um calafrio percorreu a nuca de Heitor. Nada de bom viria daí.
— Eu acho que consigo entregar o relatório antes do horário de almoço e..
Mas o homem corpulento o interrompeu, balançando a cabeça:
— Deixa isso com o Cruz, vou precisar de você em outra frente.
— Outro suposto ritual?
— Não exatamente. — Ele arredou a caneca vazia e colocou a lata no lugar. — Você ouviu falar no escândalo das gravatas?
— Por alto.
— Bem, a filha do promotor que expôs a operação desapareceu enquanto tirava férias em uma cidadezinha pra lá de onde Judas perdeu as botas e por um acaso, o prefeito deve um favor para o homem… conseguiu entender?
Heitor respirou fundo. Se existia um momento ruim para viajar a trabalho, com toda certeza era esse.
— Quanto tempo? — perguntou depois de esfregar o rosto.
— Quanto for necessário.