O Sétimo Espelho - Capítulo 02

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A névoa não esconde tudo

         — Ah, qual é? Não vai me deixar na mão agora, vai?

           O desespero acrescentou um tom avermelhado às bochechas bronzeadas de Heitor, mas o sedã não pareceu se importar com as súplicas e engasgou pela última vez antes de espumar uma fumaça escura pelo capô.

         — Porra! — rosnou, girando o volante, deixando que a inércia levasse a viatura até o acostamento. — Era só o que me faltava…

         Enquanto o carro se arrastava, todas as lembranças frustrantes da última semana passavam repetidas vezes pela cabeça do policial. Se fosse apenas um incidente, ou dois, não teria dado importância. Porém, com aquela sequência, era impossível não acreditar no diagnóstico pouco ortodoxo feito pelo colega de farda:

         “— Isso é uma ‘urucubaca’ das grandes, Heitor. — Ricardo se benzeu fazendo o sinal da cruz. — Você precisa de uma sessão de descarrego. E das boas!”

         — Ah… — Heitor suspirou, afastando os pensamentos — Aquele filho da puta do Moraes… Se queria tanto ganhar uns pontos com o prefeito, devia, pelo menos, ter me dado um carro decente.

         Voltando à realidade, afrouxou o nó da gravata, dobrou as mangas da camisa social até os cotovelos e saiu do veículo, batendo a porta com força. O sopro gélido que descia das montanhas havia dissipado uma parte da fumaça, mas não o calor que emanava pela lataria.

         — Inferno! — Chutou o pneu dianteiro enquanto abanava as mãos queimadas. — Que se foda Moraes e toda essa maldita investigação. Vou só chamar um reboque e… ah, é claro.

         Como esperado, tanto o celular quanto o rádio estavam sem sinal.

         O policial tampou o rosto com uma das mãos, segurando a linha tênue entre a lucidez e a loucura na outra. Por um breve momento, cogitou se tornar um eremita em meio às montanhas, mas as pontadas insistentes acima das têmporas o dissuadiram.

         A resignação clareou os pensamentos e finalmente pôde prestar a devida atenção à beleza sombria que o rodeava.

         O céu de nuvens claras havia ficado para trás, junto com a agitação das centenas de motores barulhentos que trafegavam nas duas direções da rodovia federal. Em seu lugar, os tons arroxeados empurravam os últimos raios solares para trás do ponto mais alto da serra, estendendo um tapete de sombras compridas pelos arbustos cheios de espinhos.

         Heitor estava acostumado a viajar e conhecia bem a BR-356, mas optou por pegar uma via lateral depois de ouvir sobre o acidente envolvendo um caminhão de combustível e alguns carros a passeio próximo ao Trevo das Almas. 

         Pelo pouco que conseguiu entender entre as falas do repórter e o chiado do rádio, toda a via no sentido Ouro Preto foi interditada por conta do risco de explosões. E mesmo que o trânsito parecesse bom agora, tinha certeza que ficaria preso no engarrafamento uma hora ou outra.

         Esteve satisfeito com essa decisão pelos últimos quilômetros, contudo, o trajeto que economizaria algumas horas paradas no trânsito começava a se mostrar mais dispendioso do que o previsto.

         Levando em consideração a hora em que saiu da BR-356, já deveria estar deitado na cama dura e bolorenta de alguma pousada reservada pelo departamento — remoendo a briga que teve com a noiva antes de partir para este fim de mundo — mas em vez dos papéis de parede bregas, se viu imerso em um breu quase monocromático. 

         — Onde é que eu fui me meter? — resmungou enquanto procurava pelo triângulo de segurança dentro do porta-malas, depois de montá-lo do lado de fora da viatura descaracterizada e enquanto andava com o celular apontado para cima em busca de sinal.

         Durante toda a viagem e o tempo parado no acostamento não cruzou com ninguém e com exceção dos murmúrios indecifráveis do vento, apenas um silêncio incômodo pairava sobre o ar gelado da serra.

         Mesmo assim, não parecia uma boa ideia continuar andando sem rumo pelo meio-fio. O trecho esculpido entre as rochas descia veloz montanha abaixo, escondendo curvas sinuosas ao longo da estrada e além da falta de sinalização, a única luz que podia identificá-lo era o pequeno retângulo brilhante que já estava com menos de 30 por cento de bateria a essa altura.

         Somados aos riscos, havia uma sensação estranha. Não sabia dizer se era o cenário fantasmagórico que a neblina pintava sobre as encostas ou talvez as sombras que pareciam se contorcer à luz da lua, mas sentia-se observado e não conseguia parar de olhar por cima dos ombros à medida que se distanciava da viatura.

         — Merda… — Apertou o tecido da blusa sobre o peito, dando meia volta. — Isso de novo…

         O coração batia rápido e o ar frio queimava a garganta. Os dedos vacilaram, complicando a tarefa simples e só conseguiu abrir os botões da camisa empapada de suor quando já estava dentro do sedã. Do que considerou o primeiro indício de sorte em muito tempo, não ouviu o som estridente da estática ao ligar o rádio e sim o vocal expressivo de Roger Daltrey.

         “Well you ain’t the luckiest girl I know

         And you won’t get luckier the way you’re going

         Your horseshoe’s rusty and your mirror’s cracked

         You walk under ladders then you walk right back

         You better run, run, run”.

         — Herbie é você? — debochou, tirando de dentro do porta-luvas uma pasta de couro preta e um pequeno frasco de vidro. — Bem… não sendo a Christine, já é lucro.

         Heitor balançou a cabeça, rindo das referências clássicas do amigo. “Tenho que parar de andar com o Ricardo”, pensou e logo se sentiu culpado por ter entornado todos aqueles comprimidos boca a dentro.

         — Qual é? Só preciso me acalmar um pouco… — explicou a própria consciência.

         Reclinando o banco do motorista, abriu a pasta e puxou um dos vários envelopes pardos de dentro. Decidiu ocupar a mente aproveitando a calmaria incômoda da estrada para atualizar as análises dos relatórios preliminares.

         De forma metódica, separou as imagens digitalizadas dos recortes de jornais e fotos da cena do crime sobre o painel do veículo e, após folhear as páginas do inquérito, reorganizou o mosaico grotesco mais algumas vezes. Infelizmente, isso não foi o bastante para dissipar a impressão de que alguém espiava do lado de fora das janelas molhadas pela cerração.

         — Se concentra… — disse ao pigarrear. — Não é hora para isso.

         De cima de uma das pilhas de papel amarelado, puxou o recorte que exibia no título em letras garrafais:

         “Filha de promotor que expôs o escândalo das gravatas desaparece durante passeio turístico em cidadezinha do interior.

         …São Miguel do Espinhaço voltou a ser palco de polêmicas essa semana. Após falas controversas do delegado regional, agora foi a vez do atual prefeito, Augusto dos Reis, chamar a atenção da mídia ao demonstrar seu descontentamento com a repercussão do caso…”

         — Esse babaca! — O inspetor olhou de relance para o vidro traseiro.

         O final da frase saiu como um sussurro e logo foi consumido pelo ar pesado que escorria sobre a lataria do veículo. 

         Heitor esfregou o rosto, engolindo seco antes de virar mais uma das páginas do processo. Sentiu um peso no estômago, as mãos tremiam e estava cada vez mais difícil de respirar, mas focar no caso era a única opção que tinha no momento e foi nisso que dedicou toda a sua atenção.

         — “Segundo os relatórios, esse não foi o primeiro caso de desaparecimento na região, só que foi o único que repercutiu na mídia”. — Leu em voz alta a nota feita a lápis no canto da folha.

         Nas páginas seguintes, matérias sensacionalistas exibiam fotos tiradas das redes sociais da jovem. Entre elas, havia uma com vários trechos sublinhados e uma imagem grotesca grampeada acima do título: “Drogas ou culto satânico?”.

         A foto enviada anonimamente para a polícia regional mostrava um manequim pálido, sorrindo de forma assustadora no meio de um emaranhado de capim. A garota com o rosto desfigurado, tinha apenas a metade superior do corpo virada para frente. Abaixo do umbigo, uma linha escura desenhava o local em que o tronco foi cortado e encaixado ao contrário de propósito.

         Além disso, as pálpebras foram arrancadas e os cantos da boca rasgados, o que dava a aparência de boneca risonha à jovem. 

         — Os órgãos internos foram retirados, mas há pouco sangue nesta foto… — As íris azuis escanearam a cópia do laudo do legista. — Então ela só foi desovada na caverna?

         “Isso vai ser bem complicado…”, suspirou, encostando a cabeça na janela embaçada.

         Embora fosse uma ótima oportunidade para sua carreira, tinha noção de que seria impossível concluir o caso a tempo de voltar e cumprir a promessa que fez à noiva. Talvez fosse por isso que não conseguiu refutar as acusações da mulher, tampouco argumentou quando viu sua mala pronta do lado de fora do quarto naquela manhã.

         — Melissa… — murmurou e, por algum motivo, não conseguiu continuar olhando para o corpo dilacerado.

         Heitor respirou fundo, tentando reprimir a vertigem, mas o amargor nauseante não o deixava em paz. Era tudo culpa dele, afinal, mesmo assim, se sentia injustiçado de alguma forma e aquela situação só reforçava este pensamento.

         Sem ânimo, guardou os documentos de qualquer jeito no envelope e o jogou de volta no porta-luvas. Estava com fome, com sono e com uma dor de cabeça infernal. Tudo o que queria era tomar um banho e dormir por três dias seguidos, mas os riffs pesados de Angus Young fizeram a gentileza de lembrá-lo que não estava em posição de desejar tanto.

         “I’m on the highway to hell

         On the highway to hell…”

         — Ah! — Deslizou a mão pelas têmporas. — Até parece uma piada…

         Essa tinha sido a gota d’água. Toda a raiva que tentou reprimir bateu como um soco na boca do estômago e a ânsia de vômito o fez saltar para fora do carro. A música que tocava ao fundo era a única coisa que parecia o conectar à realidade, ao mesmo tempo que o fazia questionar se não estava mesmo sonhando com tudo aquilo. 

         — Isso é engraçado… Eu não paguei minhas dívidas — sorriu sem esperanças — e continuo nessa estrada sem a porra de um carro. Se quiser que eu vá para algum lugar, vai ter que vir me buscar pessoalmente.

         O vento agitou as poucas folhas que restavam no topo das árvores, e o chiado agudo dos morcegos reverberou seguindo o paredão rochoso. A neblina cobria toda a estrada e muito além dela e mesmo com os faróis ligados, não era possível ver nada mais do que alguns palmos à frente, contudo, algo lhe dizia que não estava mais sozinho naquela escuridão.

         — Respira… — O inspetor levou o pulso até a orelha, tentando controlar o ritmo doloroso. — Eu vou ficar bem…

         No entanto, os ponteiros elegantes do Tissot se recusaram a sair do lugar. Em um esforço de ressuscitar as engrenagens, bateu com as pontas dos dedos no vidro, mas já era tarde demais e, de forma quase poética, pôde acompanhar o delicado mecanismo do Open Heart sucumbir através da abertura no mostrador.

         — Não, agora não! — Chacoalhou o relógio. — Por favor, não faz isso comigo!

         O ronco alto se sobrepôs aos pedidos desesperados e um clarão dourado iluminou o horizonte. 

         Heitor sentiu o coração disparar; finalmente, uma chance de sair daquela situação. Porém, ao invés de alívio, um arrepio súbito percorreu a espinha. Não tinha ideia do porquê, mas à medida que as luzes se tornavam mais nítidas, a sensação de perigo ficava maior até o ponto de se tornar insuportável. 

         O peito implodia, cada batida parecia arrancar um pedaço da sanidade.

         Não demorou para que os joelhos perdessem as forças e um suor frio grudasse à pele na camisa social. O pressentimento ruim que pairava sobre os documentos mal redigidos enviados à capital, a sensação de desespero ao receber a notícia que fora convocado para a missão e até a despedida conturbada com a noiva, nada daquilo se comparava ao mau presságio que galopava em sua direção. 

         — Isso… isso… não pode ser… — repetiu, e sem perceber, sacou a arma do coldre preso na cintura.

         O rosnado abafado pelo vento crescia, ao passo que a sombra negra se fundia ao a luz ofuscante dos faróis. Heitor não tinha dúvidas do que estava vendo e repetia para si mesmo que aquilo era apenas um carro, mas a mente cansada insistia em brincar com as imagens desfocadas.

         — Se acalma, porra! Isso não é real! — gritou consigo mesmo, evocando o resquício de sanidade que possuía para abaixar a pistola.

         No mesmo instante, o asfalto vibrou sob os pés e um borrão cor de vinho passou em alta velocidade, impregnando o ar com o cheiro forte de gasolina. Heitor virou-se de supetão, esperava ver as lanternas vermelhas sumirem na curva. Mas não havia nada. Nem luz, nem poeira. 

         Só a estrada morta e o coração batendo alto demais no silêncio da serra.

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