O Sétimo Espelho - Capítulo 03

  1. Home
  2. O Sétimo Espelho
  3. Capítulo 03 - A cor do abismo
Prev
Next

A cor do abismo.

 

          — Ah… — Heitor esfregou o rosto, limpando o suor que descia sobre os olhos. — Você é mesmo uma farsa, Inspetor Cordeiro… Uma maldita farsa.

          Poucas coisas são tão frustrantes quanto saber que está perdendo o controle da própria mente. Ter o conhecimento de que irá cair em um infinito gelado e escuro de pensamentos destrutivos e mesmo assim não ser capaz de resistir à vontade de pular naquele poço lamacento.

          Talvez porque as águas cheias de ressentimento e dor sejam amargas ao ponto de nublar qualquer outro gosto, ou porque os olhos acostumados com o breu doem quando expostos à luz, mas existe um certo charme em se deixar afundar naquele lodo fétido e viscoso.

          Neste lugar confortável onde as fraquezas estão emolduradas em espelhos de metal polido, o medo e o desespero são servidos em bandejas de prata e cálices de cristal.

          Para os que nasceram famintos, é um banquete perigoso e Heitor conhecia muito bem as implicações de se juntar a essa mesa.

          — Merda… — suspirou e uma fina camada de névoa escapou por entre os lábios.

          Uma sensação dolorosa percorreu a garganta e foi só nesse instante que o policial notou que havia prendido a respiração por muito tempo. Um gosto azedo nauseou o estômago e não conseguiu conter o que havia comido no café da manhã.

          O vento frio que descia pelas montanhas cheirava a grama molhada. Mesmo assim, não refrescou o rubor vergonhoso que aquecia a face. Na verdade, o ar de inverno queimava.

          Depois de tirar um lenço de dentro do bolso da calça, limpou o rosto, abaixou a cabeça e curvou o corpo trêmulo até que as mãos se apoiassem nos joelhos. As pupilas ainda estavam dilatadas e os batimentos acelerados ecoavam como tambores de guerra através dos botões da camisa social.

          Queria rir da situação, mas o cérebro latejava enquanto um zumbido agudo parecia perfurar os tímpanos. Todo o cansaço que havia acumulado até ali pesou de uma única vez sobre os músculos e por um instante, permitiu que a mente vagasse pelo limbo sombrio das memórias.

          “— Aqui, garotão! Sempre que se sentir assim, feche os olhos e tente focar no ritmo constante das engrenagens. Tá vendo? O seu coração precisa ser tão confiável quanto esses ponteiros, Heitor, para que não se abale quando a mente tentar lhe pregar peças de novo.”

          — Pai, está tão difícil…

          A voz grave saiu mais rouca que o normal e foi inevitável sentir uma certa nostalgia. Assim como o tio insistia em dizer, Heitor havia se tornado uma cópia quase perfeita de seu pai exceto pelo fato de que aquelas mãos ásperas eram firmes e sempre confiáveis, muito diferentes do par instável que ainda tremiam diante de seus olhos.

          Com um sorriso amargo, fechou os punhos e suspirou enquanto endireitava a postura. Pareceu que esteve imerso em pensamentos por horas e não se surpreenderia se nos próximos minutos, alguns tons alaranjados começassem a contornar o pico das montanhas ao leste. No entanto, ao contrário do que gostaria, as nuvens pesadas continuavam delimitando o fim do paredão rochoso e não demonstravam intenção de recuar tão cedo.

          Até a face minguante da lua havia se rendido, deixando apenas uma silhueta empalidecida pela névoa denunciar sua localização.

          — Eu devia tentar descansar… — sibilou por entre os dedos que varriam o rosto e os cabelos.

          O policial deu um passo em direção à viatura, mas o som do escapamento soou mais alto do que a música que tocava no rádio do sedã. Bem na linha em que os faróis conseguiam iluminar, uma fumaça esbranquiçada acompanhava o ronco baixo e constante do motor. 

          Ele piscou algumas vezes, tentando entender a situação. 

          “Já faz horas que aquele carro passou por mim e nenhum outro apareceu por aqui… Quando foi que esse…?”.

          Ao olhar para baixo, viu o conteúdo do estômago brilhar ainda fresco sob os pés e soube de imediato que havia cruzado a linha de novo. Seu rosto estava corado e as orelhas queimavam, fazia tempo que não sentia tanta vergonha de si mesmo.

          Ignorando o constrangimento do outro, o par de luzes claras se aproximou devagar, até ser substituído por um brilho vermelho cintilante. Os vidros escuros impediam que seu interior fosse revelado, mas o inspetor conseguia sentir um olhar fixo sobre si.

          Retomando a compostura, arrumou os cabelos despenteados, abotoou a camisa e tentou focar na beleza metálica que havia parado ao seu lado. Heitor sempre gostou de carros antigos e aquele cupê era um sonho de consumo que ainda pretendia que ocupasse sua garagem.

          O modelo GT, do inconfundível Maverick, se destacava pelas faixas laterais pintadas em preto e as duas listras na mesma cor que seguiam do capô até o porta-malas. Os grafismos escuros se sobrepunham à pintura vinho e, na opinião do policial, ficavam muito mais charmosos assim do que na versão recortada sobre o vermelho cádmio.

          Não menos dignas de nota, as rodas da frente tinham um aro levemente menor do que as traseiras e eram coroadas pelas belíssimas Foose Nitrous X, que pareciam ter sido polidas recentemente. Talvez, se ele baixasse um pouco, poderia ver seu reflexo débil através do aro prateado.

          “Melhor não”, concluiu balançando a cabeça.

          Resignado a mostrar a educação que havia recebido, passou na frente dos faróis de propósito, para que não houvesse dúvidas de suas boas intenções e também para que pudesse contemplar as curvas angulosas que culminavam na grade reluzente do radiador.

          — Que bom que você parou… — disse ao se aproximar do vidro do motorista — meu carro quebrou e eu estou sem sinal. 

          Ele esperou uma resposta, mas a única coisa que ouvia era o ruído do motor.

          — Eu sou policial… — Mostrou o distintivo. — E já estou aqui há algumas horas, só que não tem muito movimento nesse trecho, então… se você puder me emprestar o telefone, só preciso chamar um reboque.

          Ainda assim, nenhum retorno.

          Não podia culpar o outro, aquela situação era no mínimo complicada. Ajudar um estranho no meio do nada, à noite era algo que até Heitor preferiria não fazer. Acima disso, existia a possibilidade dele ter visto o revólver apontado em sua direção.

          “Ele não viu, se não… não teria voltado aqui”, se consolou de imediato.

          O policial endireitou a coluna, forçando os braços a deslizarem imóveis até a cintura. Quando ficava nervoso, gesticulava bastante e tinha o mau hábito de franzir as sobrancelhas. Melissa sempre dizia que ele ficava parecendo alguém pronto para puxar uma briga e a única coisa que poderia livrá-lo do mal entendido seria sua arma secreta.

          Apostando nisso, se curvou para que ficasse na altura do motorista e deu o seu melhor sorriso:

          — Pode me ajudar?

          O golpe surtiu efeito e o vidro fumê abaixou o suficiente para que a fumaça de cigarro chegasse às suas narinas.

          — E o que eu ganho em troca? — A voz charmosa era tão imponente quanto o par de olhos verdes que brilhavam na escuridão.

          Heitor sentiu um aperto na boca do estômago, havia algo indecoroso na proposta, quase como se estivessem oferecendo um pacto em troca de sua alma e sem perceber, deu um passo para trás. Aquela presença era mais eficaz do que a autoridade entalhada no distintivo e por mais que pudesse usá-lo nesse tipo de ocasião, pareceu inútil diante dela.

          — M-me desculpe, senhorita… — Esperou.

          A mulher soprou a fumaça em direção a face do inspetor antes de responder:

          — Olívia, mas pode me chamar de Liv.

          O rosto contornado por longas mechas douradas era cativante, tão perfeito quanto uma pintura angelical. No entanto, o policial não conseguia se livrar da sensação de que, por trás daquela tela inocente, algo sombrio o espreitava.

          — Me desculpe, Olívia. Preciso fazer só uma ligação, se não quiser me emprestar o celular eu vou entender, mas se puder ligar para esse número aqui… 

          Heitor puxou a carteira do bolso traseiro e depois de procurar um pouco fisgou dois cartões. O primeiro tinha seu nome e no segundo, um desenho meio infantil de um caminhão rebocando um fusca azul.

          — Não tenho nada de valor, mas vou deixar meu número com você. Então… — Inclinou a cabeça e sorriu de novo. — Um dia eu poderei pagar o favor. O que acha?

          Ele esperou que a tática funcionasse mais uma vez, mas algo naqueles olhos verdes o deixava sem confiança. Era provável que Alice Cooper pensasse nesse mesmo par de esmeraldas quando ajudou a escrever a música que tocava ao fundo.

          “One look could kill

          My pain, your thrill”.

          — Eu aceito. — Olívia continuou depois de jogar a bituca de cigarro na estrada. — Vou aceitar sua oferta.

          “… but I better not touch (don’t touch)”.

          “I wanna hold you, but my senses tell me to stop”.

          Ela passou o celular pela abertura do vidro, mas o policial estava atento demais às advertências de Cooper para notar.

          — Não me diga que já mudou de ideia? — Havia uma certa ameaça entrelaçada ao tom divertido da mulher. — Bem, eu não faço reembolsos de qualquer forma.

          — Perdão? — O inspetor meneou a cabeça confuso.

          Ela balançou o cartão de visitas relembrando-o da barganha.

          — Ah, sim. Desculpa. Acho que estou mais cansado do que pensei. Acabei me distraindo. — Heitor pegou o celular com cuidado. — Prometo que não vou demorar.

          Ele deu alguns passos até o acostamento, mas ainda podia ouvir a risada baixa que vinha do carro. “Mais que porra foi essa? Você é idiota ou o quê?”, resmungou para si, rezando para que não demorassem a atendê-lo.

          As orações subiram aos céus e depois de uma breve explicação, a voz prestativa do outro lado da linha solicitou que ele aguardasse pelo resgate no local. Adiantou que isso poderia demorar, visto que a maioria dos seus guinchos estavam alocados rebocando alguns carros que se envolveram em um acidente perto dali.

          Bem, era isso. Não tinha para onde ir de qualquer forma, então apenas agradeceu e se resignou a enfrentar aqueles olhos perversos.

          — Aqui! — Estendeu a mão até o vidro. — Muito obrigado mais uma vez. Você realmente me salvou. 

          Ela o ignorou enquanto acendia um novo cigarro e ele notou, com um calafrio inexplicável, que a chama do isqueiro cintilava entre o azul e o verde. 

          Seu rosto ainda ardia com a vergonha, então optou por não pensar muito no fato. Não fazia ideia do porquê aquela mulher o deixava tão desconfortável, mas sendo essa a primeira e a última vez em que a veria se forçou a acenar com a cabeça antes de sair.

          — Bem, então é isso. Vou ficar te devendo uma! Espero que chegue em…

          Olívia o encarou com uma expressão indecifrável e uma onda de choque percorreu as pontas dos dedos até encontrar os nervos da espinha de Heitor, quando ela segurou sua mão. O toque era frio como metal molhado, mas queimava como brasa.

          — O quê… — Tentou recolher o braço, porém a mulher não soltou.

          — Sim… Você vai ficar me devendo, mas favores e dívidas sempre encontram seu caminho de volta. — Ela sorriu, deslizando o dedo indicador pela linha que descia tortuosa na palma do inspetor. — E é bom saber que meu pagamento não vai demorar.

          — Do que você está falando?

          — Aqui! — Ela apontou para algo que ele não conseguia ver. — Está escrito na linha do seu destino. Vamos nos encontrar em breve, mas por enquanto…

          Um novo arrepio seguiu pelo braço do policial quando ela finalmente o soltou.

          — … Vou levar isso comigo. — Concluiu, fechando o vidro.

          O motor arrancou com um rugido abafado através da noite.

          — Levar… — O inspetor ainda não tinha abaixado a mão quando subitamente percebeu a marca clara em torno do dedo anelar. — … O quê…? 

          O coração disparou e um tremor involuntário sacudiu os membros. O suor descia pela testa e os olhos arregalados não conseguiam se desgrudar daquele lugar, onde um círculo pálido marcava na pele o compromisso arrancado à força.

          Heitor queria sair correndo e gritando atrás daquele carro, mas a boca estava seca e o chão parecia ter afundado sob seus pés e tudo o que pôde fazer, foi contemplar a traseira elegante do carro desaparecer na escuridão. 

          Um pensamento travesso passou por sua cabeça naquele instante: 

          Talvez estivesse errado desde o começo e o fundo do poço não fosse lamacento e negro, e sim vinho metálico. Se fosse o caso, era possível que, se ele olhasse por muito tempo para aqueles espelhos de metal, não seriam azuis os olhos que o encarariam de volta. 

          Talvez, as íris que brilhariam em meio ao breu fossem de fato, verde esmeralda.

Prev
Next

Comments for chapter "Capítulo 03"

MANGA DISCUSSION

Deixe um comentário Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*

*

Tags:
Sobrenatural

© 2025 3Lobos. Todos os direitos reservados

Sign in

Lost your password?

← Back to 3 Lobos

Sign Up

Register For This Site.

Log in | Lost your password?

← Back to 3 Lobos

Lost your password?

Please enter your username or email address. You will receive a link to create a new password via email.

← Back to 3 Lobos