O Sétimo Espelho - Capítulo 04
1993
A sala ampla e bem iluminada da delegacia estava longe de ser confortável.
Não pelo espaço em si, já que as grandes janelas de vidro blindex permitiam um belo vislumbre da metrópole agitada, sem deixar que o caos sonoro incomodasse os ouvidos sensíveis. Também não era culpa das mesas de madeira escura, perfeitamente alinhadas em grupos de quatro, ou dos monitores duplos que ocupavam o centro das estações de trabalho individual.
Se pedissem para que qualquer um dos investigadores dali apontasse o culpado, provavelmente escolheriam a tensão inerente ao trabalho que faziam.
Todos os dias pela manhã, o cheiro doce e inebriante do café misturava-se aos tons de vermelho que pintavam os vários quadros de investigação e por mais que não fosse usual encontrar pilhas de papéis amassados sobre as mesas, alguns mantinham o hábito de guardar pastas cheias de documentos impressos, o que acrescentava um aroma nostálgico ao lugar.
Para Heitor, o motivo do desconforto não residia nos olhares cansados que rastejavam entre as várias cenas de crime que ocasionalmente surgiam nos monitores. Tampouco ligava para o clima pesado que pairava sobre as baias. Para o inspetor chefe, o motivo para que as manhãs na Décima Terceira fossem particularmente desagradáveis ficava sentado na mesa ao lado.
— “Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa”, investigador Cruz, bom dia! Com quem eu falo?
Mesmo que não tivesse se apresentado, Heitor conhecia muito bem o dono da voz calorosa que ressoava pelo viva-voz.
— Ainda não são cinco da manhã, Ricardo. Qual é a dessa empolgação?
— Finalmente! — O timbre ficou um tom mais agudo. — Se não é o inspetor mais sortudo da DHPP! Já estava sentindo sua falta, Dominó! Por que não atendeu minhas ligações?
Mal haviam se cumprimentado e o arrependimento já tamborilava pelas pontas dos dedos de Heitor. Ele nunca gostou desse apelido, mas agora, a alusão forçada aos poderes da personagem soava desdenhosa demais até mesmo para os padrões pouco convencionais do colega.
— Já falei para não me chamar assim! — rosnou, enfatizando cada palavra.
— Tá bom… tá bom. Mas é sério, o que aconteceu? Todo mundo estava preocupado com você.
O inspetor tinha em mente que não seria possível evitar as perguntas, mas também não estava orgulhoso em relatar os acontecimentos:
— Ah… — suspirou — A viatura quebrou no meio do caminho e tanto o celular quanto o rádio ficaram sem sinal… Tem pouco tempo que o reboque chegou trazendo um carro reserva.
Um assobio longo antecedeu a afronta. Alguns pratos ficam mais saborosos quando servidos frios e não é diferente para um conselho ignorado.
— Te falei para procurar uma benzedeira antes de viajar, não falei? Mas você não me escuta…
— Não fode, Ricardo! — interrompeu — Eu tô cansado pra caralho e nem um pouco afim de escutar essa baboseira. Só… quebra um galho pra mim e puxa essa placa no sistema, pode ser?
— Mas é claro, Inspetor Chefe Cordeiro. Você manda e eu obedeço!
Heitor esfregou o rosto e, engolindo com dificuldade as profanidades que tentavam escapar pelos dentes, se resignou a soletrar o alfabeto fonético:
— Golf, Sierra, Kilo, 1, 9, 9, 1.
— GSK 1991 — Cruz cotejou.
O som rápido e compassado das teclas mediou o silêncio estranho que se seguiu.
Não que houvesse algum mal entendido entre os dois. Heitor conhecia muito bem a personalidade extrovertida do amigo e quão difícil era ofendê-lo, mesmo que tivesse passado muitos anos tentando descobrir uma forma efetiva de fazer isso. Aliás, outra coisa que aprendeu com o árduo tempo de convivência foi que, quanto maior a curiosidade de Cruz, mais tempo ele passaria criando fantasias e teorias sobre o fato, o que por sua vez, só aumentaria o repertório de provocações.
— Merda… — Revirou os olhos, aceitando o que estava por vir. — Desembucha logo, ou vai acabar morrendo entalado, seu arrombado.
O som da gargalhada de Cruz ecoou pelos auto-falantes, preenchendo o interior do carro. Do outro lado da linha, o barulho incomodou o colega de turno que olhou o inspetor com uma carranca antes de se levantar da cadeira e sair da sala, resmungando algo incompreensível.
— Que bom que você me conhece, Domi… Digo, inspetor Cordeiro. Estava ficando roxo já.
— Sei, sei. Só… pergunta logo, vai.
— Hm… — A voz alta e despreocupada tornou-se um sussurro abafado pela mão em forma de concha que protegia o microfone. — A Mari me contou que passou a noite conversando com a Melissa… Então…
— Imaginei mesmo que ela fosse desabafar com sua irmã. — Riu, tentando esconder o fel que subia pela garganta. — E… Como ela está?
A resposta era óbvia — e ele já a havia repassado mentalmente centenas de vezes — mas ainda assim temia ouvi-la.
— Bom… Você conhece sua noiva melhor do que ninguém. Ela está magoada e por isso está pensando em um monte de besteiras.
Heitor engoliu seco antes de perguntar:
— Que tipo de besteiras?
— Bem, você sabe… Coisas como: “Eu deveria saber que o casamento era um sonho só meu” e “eu sou apenas a amante, a verdadeira esposa do Heitor sempre foi o trabalho”. Coisas desse tipo.
As acusações não eram bem uma novidade, mas fizeram o coração do policial errar uma batida. Melissa tinha o hábito de cuspir essas e outras sempre que ele remarcava um compromisso ou quando precisava viajar a trabalho por longos períodos de tempo.
Heitor nunca a culpou pelos ataques, no entanto. Se estivesse em seu lugar também estaria inseguro e por mais que doesse, ouvia em silêncio todas as lamentações até que a noiva estivesse satisfeita.
Naquela noite, porém, não conseguiu segurar a língua dentro da boca e como se estivesse possuído rebateu cada uma das provocações, pegando Melissa desprevenida. Depois que se acalmou também ficou surpreso com o rompante, mas já não havia muito o que fazer.
“É… eu estraguei tudo…”, pensou, e um suspiro profundo quebrou o silêncio.
Ricardo, que só agora percebeu que talvez tivesse dito algo de errado, falhou miseravelmente ao tentar remediar a situação:
— M-mas ela sabe que agiu sem pensar quando te enxotou daquele jeito. Pelo menos foi isso que a Mari me disse. Bem… ela tinha motivos para estar puta contigo, mas isso não justifica ter jogado suas coisas pela janela. Que situação de merda, hein?
Heitor apertou o volante com força, remoendo o fato de nunca ter cedido à vontade de esganar o outro.
— Aquela coleção de camisas sociais brancas caindo do céu — continuou a divagar — Deve ter sido uma baita cena, com todo respeito, é claro.
Ricardo não dispunha de um senso comum muito apurado, mas o tempo parecia estar deteriorando o pouco juízo que ainda lhe restava. Tinha certeza que, na época em que o convidou para ser seu padrinho de casamento, ele não era tão perturbado quanto agora.
“Pensando nisso, se houver a mínima chance da Melissa me perdoar, vou me certificar de riscar o sobrenome Cruz da lista de convidados”, maquinou antes de falar:
— Não foi assim que aconteceu e você sabe muito bem que ela não faria esse tipo de coisa.
— Não precisa ficar com vergonha, cara. Eu já passei por isso também. Lembra daquela vez que você me emprestou suas cuecas porque as minhas ficaram presas perto de um ninho de bem-te-vis? Tenho medo de passar naquela rua até hoje. Como pode um coraçãozinho tão pequeno guardar tanto rancor?
Ele continuou devaneando animado enquanto os nervos do motorista estalavam do outro lado da linha.
— Eu não lembro disso — Cordeiro respondeu de forma automática, mas era impossível não lembrar da coisa mais lamentável que já presenciou com os próprios olhos.
— Como não? Eu até tentei devolver, só que você ameaçou cortar o meu…
— Puta que me pariu… a placa, Ricardo! Já encontrou o dono?
— Claro! O nome da feliz proprietária desse belíssimo Maverick Gt 74 é a senhora… Olívia Ha.. — gaguejou — Haari… Haarieh. Não sei como se pronuncia isso.
Um calafrio percorreu a espinha de Heitor ao ouvir o nome.
Ele estava tentando culpar a fome e o cansaço, mas sabia que os motivos por trás do deslize eram bem menos honrosos. De fato, ficou tão hipnotizado por aqueles olhos que não percebeu, até ser tarde demais, as más intenções que brilhavam através das íris esmeralda e essa verdade queimava os nervos todas as vezes em que via a marca clara em forma de círculo no dedo anelar.
— Olívia, né? Então aquela ladra de beira de estrada me falou o nome real…
— Espera… você está dizendo que uma senhorinha te assaltou?
— Ela não era uma senhora. Tinha no máximo trinta e poucos.
— Bom, então ela te passou um nome falso. A senhora… Haari… — Ricardo desistiu. — A senhora Olívia aqui, deve estar beirando os setenta anos.
“Setenta?” repetiu para si. Havia várias explicações lógicas para a descoberta, porém, nenhuma delas parecia agradar o policial. Talvez só estivesse criando muitas expectativas, mas algo ali não se encaixava.
— O que foi que você achou? — disse, por fim.
— Eu consegui encontrar dois registros para essa placa. O primeiro é um recibo de compra e venda, datado de 29 de setembro de 1975, em nome de Olívia Haarieh. Como ela precisava ter pelo menos 18 anos para assinar o documento…
— Entendi. Além de roubar alianças, aquela vigarista também é ladra de carros e identidades.
Heitor cerrou o maxilar, pisando mais fundo no acelerador.
Toda aquela escuridão estava começando a afetar sua percepção de espaço e por vezes, tinha a sensação de estar andando em círculos, mesmo que isso não fosse fisicamente possível. Também podia jurar que pares de olhos refletiam as luzes dos faróis e desapareciam logo depois dentro do matagal espinhoso que ladeava a rodovia.
“Seja racional, Inspetor! Isso aqui é uma pastagem enorme, deve ter um monte de animais selvagens procurando por comida. O pai mesmo disse que topou com uma onça na beira da estrada naquela vez… Para onde ele estava viajando mesmo?”.
— Heitor? — Ricardo chamou depois do breve silêncio. — Tá tudo bem?
— Sim… — Limpou o suor que descia sobre os cílios longos. — Só estava pensando.
— Entendi… Bom, essa mulher de quem você falou pode ser filha da outra Olívia e ter herdado o carro além do nome, não é mesmo? Se for assim, deve ter algum registro. Deixa eu ver.
— Existe a possibilidade, mas não acho que seja o caso.
— Sempre pessimista. — Ricardo estalou a língua e se concentrou em vasculhar os bancos de dados que tinha à disposição, porém, não demorou muito a suspirar. — É… Nadinha de nada. Mas, antes que você diga “eu te avisei”, vou fazer uma requisição para acessar o arquivo físico. Deve ter alguma coisa interessante no meio das papeladas que não estão digitalizadas desta época.
— É uma boa ideia, valeu! Você disse que achou dois registros, sobre o que era o outro?
— Um boletim de ocorrência redigido no dia 3 de março de 1993. Parece que nossa vovozinha se envolveu em um acidente bem feio. Segundo o laudo pericial anexado, ela estava dirigindo em alta velocidade e bateu de frente com um Opalão que vinha em sentido contrário na rodovia.
As palavras de Cruz ficaram distantes, abafadas pelo som das sirenes, gritos e lamúrias que escapavam pelas brechas de uma memória trancada a sete chaves no peito de Heitor.
— Que coincidência — murmurou.
— Espera. Não foi nesse dia que seu pai…
Um arrepio frio fez com que Cordeiro estremecesse.
— Foi. Tem mais alguma informação relevante?
— Hum… — Correu os olhos pelo documento, tentando decifrar as partes menos visíveis. — Então, o registro foi feito à mão e depois digitalizado de uma forma bem porca, se quer saber. Não dá para ler quase nada no final da página, mas parece que a nossa vovó foi encaminhada para o hospital e o outro motorista… ficou preso nas ferragens e morreu carbonizado.
— Entendi. Ela respondeu a alguma acusação?
Ricardo ficou em silêncio por um momento e tudo o que se podia ouvir era o barulho compassado das teclas do computador. Enquanto isso, Heitor esperou paciente até que o amigo finalizasse sua “mágica”, como o próprio gostava de dizer.
A personalidade extrovertida e o jeito despreocupado do inspetor mascaravam uma face completamente obcecada em softwares de pesquisa e monitoramento de dados e mesmo que a maioria das pessoas não o levassem a sério, Cruz possuía classificações que garantiriam uma posição de chefia no departamento. No entanto, nunca demonstrou interesse pela promoção.
— Ah!! Sou foda… dig dim, dig dim, dig dim, dim…
Enquanto Ricardo cantarolava o sucesso, Heitor não pôde deixar de pensar que era um alívio que o amigo não tivesse pretensões tão altas. Ou talvez, no fundo ele soubesse que ninguém em sã consciência colocaria uma pessoa tão perturbada no alto escalão.
— Pare de se gabar e fala logo o que encontrou… — cuspiu depois de varrer os cabelos com as pontas dos dedos.
— Foi até fácil. Primeiro eu fiz um pré-tratamento na imagem, removendo alguns borrões e sombras. Depois corrigi o contraste e o brilho para deixar o texto mais visível. Também apliquei uns filtros para reduzir o ruído e passei o OCR em algumas partes que…
— Eu não dou a mínima para o processo, Ricardo — interrompeu.
— Você não pode nem fingir?
— Não. Continua.
— Chaaaatooo… — Um rosnado baixo do outro lado o dissuadiu da birra. — Bem, o fato curioso é que, no dia seguinte em que a Olívia deu entrada no hospital, a ala onde ela estava internada pegou fogo. Todos os arquivos foram destruídos. Depois que o caos foi controlado, deram falta de um dos pacientes e adivinha só, a velhinha e suas informações pessoais nunca mais apareceram no sistema.
Por algum motivo Heitor não se surpreendeu. De fato, poderia até dizer que já esperava por algo assim e isso o deixou nervoso.
“Então é impossível rastrear o último paradeiro dela…”, pensou e como se tivesse adivinhado, Ricardo emendou em um tom de voz malicioso:
— Bom, vai ser difícil até para mim, só que não posso deixar que uma loba velha morda a bunda do nosso Cordeirinho, né? Me dá uns dias e vou ver o que consigo descobrir.
Heitor abriu a boca para retrucar, mas fechou logo em seguida. Apesar da analogia pífia, o amigo não estava completamente errado e concordar com Ricardo, mesmo que inconscientemente, minou o resto de energia que ainda possuía.
Cruz estalou a língua, decepcionado com a falta de reação do colega. Estava prestes a atazaná-lo quando um chiado agudo o fez afastar os fones do ouvido.
— Que porra foi essa? — Cordeiro abaixou o volume do rádio depressa. Todos os pelos do corpo estavam eriçados.
— Eu não fiz nada. — Ricardo choramingou enquanto massageava as orelhas. — A interferência tá vindo do seu lado.
— Já te falei para parar com essas brincadeiras estúpidas. Essa merda não teve graça nenhuma. Eu vou desligar. Me manda uma mensagem se descobrir alguma coisa.
— Do que você está falando? Enlouqueceu de vez, f… — O som da chamada encerrada ecoou por alguns segundos antes que Cruz desligasse o headset e o colocasse sobre a mesa. — Mas que merda foi essa que acabou de acontecer?