O Sétimo Espelho - Capítulo 05
Olhos escarlate
— Puta merda! Aquele desgraçado me paga! — Heitor rosnou, limpando o suor gelado que descia pela testa.
O som estridente ainda ecoava nos tímpanos e a sensação agourenta parecia espreitar através das sombras que se projetavam na estrada.
“Dessa vez ele passou dos limites”.
Os dedos trêmulos tatearam o painel por um longo tempo até que conseguissem ligar o rádio. Depois disso, foi relativamente fácil achar o controle de volume e forçá-lo até perto do limite de decibéis prejudiciais à audição humana. Contudo, era difícil prestar atenção na letra da música e até mesmo a melodia pesada não conseguia abafar a risada maligna que arranhava sua cabeça de dentro para fora.
Por mais que o amigo fosse versado nos mais diversos tipos de pegadinhas e tivesse um dom quase sobrenatural de tirá-lo do sério, não conseguia imaginá-lo usando algo tão grotesco para se divertir. De qualquer forma era mais fácil, ou conveniente no momento, colocar a culpa nele do que procurar uma outra explicação para o que tinha acabado de ouvir.
“Que se foda”.
Heitor pisou fundo no acelerador e agarrou o volante com as duas mãos. Temia que se afrouxasse o aperto ou se desviasse seus olhos da estrada um milímetro que fosse, teria que admitir a existência daquilo que rastejava entre os bancos e carpetes escuros do veículo, mas que tentava ignorar com todas as forças.
— Merda… — Engoliu seco ao perceber a névoa esbranquiçada abandonar os lábios.
Sabia muito bem o que isso significava e o que aconteceria depois, e não era como se pudesse evitar.
O peito martelava batidas descompassadas e estava ficando mais difícil de respirar. A camisa social, completamente grudada ao corpo, aumentava o desconforto que escorria pelas costas e era impossível não tremer com os calafrios gelados que subiam em direção à nuca. Não podia confiar na visão periférica e até a focal já estava turva demais para que fosse seguro continuar.
Contudo, parar naquele lugar estava fora de cogitação.
Heitor respirou fundo e talvez porque a vida realmente dependia do sucesso da empreitada, conseguiu capturar de primeira o pequeno frasco de vidro dentro do porta-luvas, derrubando vários documentos no assoalho do carro no processo.
Com um alívio indescritível, despejou todo o conteúdo garganta abaixo, só para experimentar uma onda ainda mais forte de pavor percorrer a espinha.
— N-não pode ser… n-não tem como…
As pupilas dilatadas se fixaram em um ponto distante na estrada enquanto o policial chacoalhava o frasco vazio.
Os pensamentos vagaram para o momento em que pegou o vidro cheio dentro da cômoda e para a única vez em que precisou usá-lo depois disso. Não lembrava de ter olhado para dentro, mas sabia instintivamente que trouxera uma quantidade razoável para durar pelo menos uma semana.
“Será que eu o deixei aberto? É isso, deve ter derramado dentro do porta-luvas… como faço para achar? Eu preciso parar o carro”.
A cabeça girava e uma sensação azeda subia pela garganta. Podia sentir o cheiro podre que escapava dos sussurros silenciosos atrás da orelha e o toque gelado que arranhava a pele dos tornozelos, mas nada disso era tão aterrorizante quanto o par de olhos vermelhos que se aproximavam pelo asfalto.
Entorpecido pelo medo, sentiu os dedos escorregarem até o bolso da calça.
— É tarde demais para me desculpar? — Riu ao pensar na despedida tumultuada. — Talvez seja melhor assim.
Não iria ligar, só queria ver o rosto da noiva uma última vez, mas até isso lhe foi negado.
— Bom… já não importa.
Heitor jogou o celular sem bateria no banco de trás, suspirou e arrumou os cabelos sem desviar das íris vermelhas. Estava pronto. Havia desistido há muito tempo, de qualquer forma.
A luz maligna preencheu o interior do carro, refletindo no pequeno objeto metálico que descansava imóvel sobre o painel. Ele reconheceu de imediato aquele isqueiro dourado.
— Como…?
Era impossível, simplesmente.
Essa foi a resposta para todas as perguntas que invadiram o cérebro. Ele teria visto ela colocando aquilo lá. Teria notado em algum momento.
— Como? — repetiu e o tempo pareceu correr mais devagar enquanto os dedos se esticaram sobre os arabescos que ondulavam na superfície brilhante — Olívia…
Reconheceu o choque que subiu pelos nervos do braço até a nuca. Ao mesmo tempo em que aqueles olhos verdes preencheram a mente pode ver, claro como o dia, as luzes de freio do caminhão de combustível gigantesco parado bem no meio da estrada.
— Merda!
Heitor cravou o pé no freio e os pneus guincharam ao derrapar pelo asfalto úmido. Ele sabia que o carro não conseguiria parar e o instinto assumiu o controle.
A queda brutal à direita — em uma ribanceira engolida por névoa — era uma sentença de morte. Do outro lado, um acostamento estreito, irregular, forrado por arbustos secos e pedregulhos.
Não precisava pensar muito.
No próximo segundo, puxou o volante para a esquerda, aliviando o pedal do freio para não perder o controle. O carro deu uma guinada brusca e a traseira derrapou. O volante tremeu em suas mãos, porém segurou firme. O cascalho ricocheteava no assoalho com estalos secos, enquanto a lama engolia o para-brisa.
Sentiu o carro vibrar com o impacto, raspando o fundo ao passar por cima do emaranhado de espinhos e logo depois, o espelho retrovisor da direita bateu na lateral do caminhão. Estalou e se partiu, mas o carro passou.
A lataria prateada sumiu assim como apareceu e o coração de Heitor só voltou a bater quando sentiu a pista de novo sob os pneus. Parou alguns metros depois, arfando, com os dedos ainda cravados no volante e o gosto metálico da adrenalina na boca. Estava vivo.
Durante alguns minutos permaneceu em silêncio, atônito. Ainda não entendia se tinha sonhado ou vivido tudo aquilo, mas sabia que agora estava completamente acordado. A cabeça girava e uma dor lancinante percorria o peito a cada respiração, seguindo o caminho impresso pelo cinto de segurança.
— Porra! — Fechou os olhos, deitando a cabeça no encosto do banco.
Do lado de fora, o mundo era só água e vento e o limpador de para-brisa rangia tentando vencer a tempestade que se misturava ao barro. “Não estava chovendo, estava? Quando começou? Foi naquele dia?”.
Os pensamentos desordenados o levaram para outro lugar.
***
Trovejava e as luzes na estrada passavam como borrões pela janela do carro. Estava tão frio que a respiração se condensava em uma fina camada de névoa na frente do rosto. Lembro que gostava dessa sensação antes de descobrir o que ela significava. Laura nunca gostou.
Ela também estava lá, sentada no banco de trás, ao meu lado. Éramos só nós dois ou havia mais alguém?
Meu pai disse para ficar quietinho, que logo chegaríamos na cidade, mas eu estava com medo. Puxei o cobertor até cobrir os olhos, Laura reclamou, não me importei. Mesmo sendo dois anos mais velho, não conseguia ter metade de sua coragem. Acho que mesmo hoje, depois de adulto, não pude alcançar a menininha de Maria-chiquinha que tentava me consolar.
Em algum momento dormi. Ou achei que dormia, até sentir meu corpo pesar com um frio que parecia vir de dentro dos ossos. Tentei me mover, estava preso. Não pelo cinto, ou pelo cobertor, era uma força invisível, mas totalmente real. Quase como se alguém estivesse sentado sobre o meu peito.
A respiração falhou.
Chamei meu pai, a voz não saia. A garganta estava queimando. Dava a impressão que dedos compridos a apertavam com força. Tentei virar a cabeça, levantar, mas os membros não obedeciam. O coração batia tão forte que pensei que morreria ali mesmo, antes de conseguir chamar a atenção de alguém.
A visão estava turva, embaralhada pelo medo e pelas lágrimas que rolavam quentes sobre a bochecha, mas eu vi — juro que vi — algo se movendo no escuro, dentro do carro.
No começo, pareciam sombras líquidas, deslizando pelas bordas que delimitam o que é visível ou não. Depois, se tornaram mais tangíveis, como as pernas longas e finas de uma aranha gigante, escalando o banco. Por fim, se transformaram em dedos compridos e gelados, que percorreram meu corpo, tateando cada pedaço de pele exposta.
Gritei, quando alcançaram meu rosto, mas o som ficou preso atrás dos dentes.
Um sussurro pútrido se formou ao pé do ouvido, murmurando palavras desconhecidas, se divertindo com todo aquele desespero.
Ouvi uma risada baixa. Cruel. Talvez, familiar.
No banco da frente, a voz do pai soava distante. Completamente alheia ao que acontecia às suas costas. Estava cantando? Ou conversava com alguém? De certo falava com outra pessoa, não consigo me lembrar.
Bem, não podia ser com Laura. Ela estava sentada ao meu lado, chorando em silêncio. Olhando para mim com os olhos arregalados de medo, pedindo por ajuda. Implorando por uma resposta que eu não podia dar.
Eu tentei! Juro. Queria dizer que estava tudo bem, mas a voz não saía. O corpo seguia rígido, prisioneiro de algo invisível.
Ela entendeu, mesmo sem ouvir som algum. Sorriu e se levantou.
A garotinha de apenas seis anos, Maria-chiquinhas e um lindo vestidinho verde, saltou para o banco da frente gritando em fúria. Quis agarrá-la, impedi-la, mas não consegui. A pequena silhueta se moveu depressa demais.
No momento em que consegui me libertar, vi aqueles olhos vermelhos gigantescos se aproximarem depressa do para-brisa. Houve um segundo de silêncio e Laura gritou mais alto do que era possível, ou fui eu?
Não tenho certeza, mas o carro perdeu o controle depois disso. Lembro de ter visto um clarão e sentir que o mundo inteiro girava ao meu redor. O barulho era ensurdecedor. O som do metal se contorcendo, vidro quebrando, tudo misturado ao rugido dos trovões que rasgavam o firmamento.
Depois, silêncio.
Não sei quanto tempo se passou, mas quando abri os olhos, senti a chuva fria no rosto. Estava deitado fora do carro. As sirenes distantes cortavam o céu como os trovões de minutos antes. Vozes gritavam. Alguém chorava e o ar cheirava a óleo e terra molhada.
Meu corpo estava dolorido, mas eu não estava mais com medo. Não até perceber a figura presa entre os destroços do carro.
Ele me encarou imóvel. O olhar… escuro demais. Vazio demais. Nada parecido com os olhos azuis que sempre me observavam com carinho. Na verdade, parando para pensar, aquele dia… eles nem mesmo estavam azuis.
Eles eram…
***
— Verdes! — Heitor berrou sem perceber.
Do lado de fora, duas mulheres observavam aflitas enquanto um dos homens envolvidos no pequeno engavetamento — encharcado pela chuva que ainda caía na serra — esmurrava o vidro do motorista. Mesmo abafada, sua voz soava alta o suficiente para que o policial reconhecesse a urgência.
— Ei! Você está bem? A ambulância está chegando, aguenta firme!
“Ambulância? Pra mim?”, pensou atordoado, mas logo se lembrou de onde estava e o que tinha acabado de acontecer. Do ponto de vista daquelas pessoas, seu acidente deve ter parecido muito mais grave do que realmente foi.
— Eu estou bem — respondeu, abaixando o vidro — foi só o susto.
— Tem certeza? — O homem aproximou o rosto tentando verificar o estado do outro. — Você ficou apagado por meia hora, cara. A gente achou que você tinha morrido.
— Bom, eu também achei que ia morrer. — Riu. — Parece que meu corpo relaxou demais depois de perceber que estava inteiro. Desculpa por ter feito vocês se preocuparem. O motorista do caminhão está bem?
— Sim, eu que estava dirigindo o tanque. Me desculpa… quase causei uma tragédia. Achei que os caras iam se resolver e sair da pista, não tava vindo ninguém até que você apareceu e voou por cima do meio-fio…
Sua voz estava trêmula e mesmo debaixo de toda aquela chuva dava para perceber o semblante abatido.
Em outra ocasião Heitor desceria do carro e daria uma bronca em cada um dos envolvidos. Pegaria os documentos e faria questão de acompanhar o processo administrativo, mas hoje, queria apenas sair dali.
— Está tudo bem. Graças a Deus não aconteceu o pior. Espero que tenham sinalizado a via.
— S-sim… — respondeu com a voz embargada.
— Bom, não vou esperar pela ambulância, mas vocês deveriam. Adeus.
A mulher que escutava de perto se opôs, insistindo que o homem desse um jeito de segurar o motorista até que o socorro chegasse. Heitor se negou:
— Sou policial, vou assumir a responsabilidade. Se cuidem! — Fechou o vidro e arrancou o carro, que chacoalhou até voltar totalmente para o asfalto.
As reclamações diluíram-se no vazio escuro que escorria pelos paredões de pedra deixados para trás. Contornando o horizonte, uma linha dourada rasgava a noite, pintando o céu com uma miríade de tons azul violeta.
Finalmente, estava amanhecendo.