O Sétimo Espelho - Capítulo 06
Reencontro
Heitor encostou o carro no meio-fio e desligou o motor. Estava exausto demais para pensar, mas o corpo ainda se mantinha em alerta, sem acreditar que a viagem finalmente havia terminado.
— Caralho… — exalou uma respiração profunda.
Ficou um tempo parado, debruçado sobre o volante. Tentava lembrar de como tinha chegado ali, mas todas as vezes que fechava os olhos, via a grande lataria metálica e aquelas luzes vermelhas surgindo de repente no meio da escuridão.
— Ah… — esfregou o rosto, estralando o pescoço.
Todas as juntas doíam e a cabeça latejava como se estivesse debaixo de um grande sino de metal. Os músculos protestavam ao mínimo movimento, mas ele sabia que ainda não era o fim.
São Miguel do Espinhaço tinha muitas peculiaridades e a mais desagradável, segundo o inspetor, se exibia aos forasteiros logo na chegada. Havia duas formas de entrar na cidade: a via principal — que levava ao centro urbano e era acessível de carro — e a Estrada dos Escravos — que começava no cemitério, descendo por vielas estreitas até a praça central.
Apesar de muito visitada pelos turistas, a trilha de calçamento pé-de-moleque era íngreme demais para os veículos urbanos e apenas cavalos ou pessoas a pé conseguiam transpor os trechos mais acidentados.
— É claro… — Riu sem esperanças ao perceber os muros compridos pintados em cal. — Mais que p…
Heitor respirou fundo, controlando a vontade de gritar todos os sacrilégios que conhecia. Por mais que não fosse religioso, tinha certo respeito pelos mortos. De qualquer forma, não havia muito o que fazer, era melhor dar meia volta enquanto conseguia enxergar o caminho.
Outro atributo marcante de São Miguel do Espinhaço era a névoa perene que descia das montanhas, cobrindo a cidade. Aliás, essa era uma das características que mais chamava a atenção dos viajantes e que deu origem a várias lendas e mitos ao longo dos anos, ou pelo menos, era isso o que Ricardo repetia, enquanto explicava como não se perder depois de sair da Serra.
“— …aí, você vira à esquerda depois da ponte e tarãaa! Já vai ver a pousada, aliás, é a única que tem por lá — disse animado.
Heitor não prestou atenção na metade das instruções, veria por si mesmo o trajeto no Google Maps depois.
— Tem umas histórias bem interessantes sobre esse lugar! Vi um vídeo que…
As palavras se perderam enquanto o inspetor chefe digitava o relatório final de um dos casos que tinha finalizado na noite anterior. Estava exausto. Dormiria ali mesmo se pudesse. Mas não podia.
Além do trabalho que se amontoava sobre a mesa, Ricardo não calaria a boca enquanto Heitor não fingisse prestar atenção.
— E tem essa também, que é bem famosa…
— Você tem 10 segundos — bocejou.
— Qual é? Tô aqui tentando te deixar informado e é assim que você agradece?
— 9, 8…
— Modo Eminem, né? Tá certo! — Cruz se endireitou na cadeira, puxando o estojo de Heitor como se fosse um microfone. — Uma das histórias mais famosas, é a da filha de um fazendeiro rico da região. Proibida de se casar com seu verdadeiro amor, foge no trem que ligava a pequena cidade à capital. No meio do caminho, descobre que o amado foi brutalmente assassinado…
Heitor segurou o riso, não queria dar corda às loucuras do outro, mesmo que fosse divertido ouvi-lo falar tão rápido quanto os áudios em velocidade 5 que escutava no grupo dos antigos colegas da faculdade.
— …Sem pensar duas vezes — continuou Ricardo — a noiva resolve se juntar a ele, saltando da ponte para o abismo sem fim. Dizem que o longo vestido branco que usava, desceu sobre a imensidão, escondendo o sol que nascia ao longe, atrás das montanhas. Desde então, um véu espesso se estende sobre os céus de São Miguel do Espinhaço, relembrando a beleza trágica de um amor proibido. Fim! O que achou?
— De verdade?
— Não… — suspirou — de mentirinha, para me deixar feliz.
— Não dá… — Cordeiro não conseguiu mais segurar a risada. — Foi a coisa mais melodramática que já ouvi!
— Vai zuando… — Cruz revirou os olhos, fazendo biquinho. Sua expressão oscilou por um breve momento. — Um dia você vai entender”.
Um vento frio soprou pela janela do carro, fazendo Heitor se apressar em abotoar a camisa social. Não queria pensar demais no assunto, mas algo no semblante de Ricardo naquele dia continuava o incomodando.
— “Amor proibido”, né? — repetiu enquanto desamassava o paletó e o vestia — O que eu vou fazer com você, seu idiota…?
Uma névoa fina escorreu de seus lábios quando desceu do veículo, mas ele não percebeu. Do lado de fora, um silêncio pálido tremeluzia com os raios de sol que escapavam das montanhas.
Estava no ponto mais alto da cidade e, ainda assim, era difícil ver algo. Contudo, entendia o porquê deste ser um dos lugares mais famosos entre os turistas. Era inegável a sensação de liberdade que preenchia o corpo a cada passo.
— É como andar sobre as nuvens, não é?
Um calafrio percorreu a espinha de Heitor e instintivamente, levou a mão até o coldre preso à cintura.
— Eu não… tinha te visto aí — respondeu, virando-se para encarar o dono da voz que soava distante e ao mesmo tempo próxima demais.
— Peço perdão se lhe assustei, não foi minha intenção. — Se desculpou com um aceno contido depois de tirar a boina que cobria a cabeça.
O rapaz que estava encostado no muro, era jovem, bonito e tinha uma postura elegante apesar do ar ausente. Se olhasse com cuidado, seu aspecto etéreo dava a impressão de que ele havia acabado de sair de uma fotografia guardada em um baú por décadas.
O policial o encarou por alguns segundos antes de se aproximar. Ele era estranho, mas não representava perigo, concluiu.
— Tudo bem, eu só estava distraído. Acho que errei o caminho para a cidade e acabei me perdendo. Foi bom te encontrar, você poderia me mostrar como chegar na pousada Paraíso?
O jovem se moveu com desinteresse. Seus passos eram tão arrastados que pareciam cravados na terra.
— A pousada Paraíso? — repetiu a pergunta, depois apontou — Segue por ali, duas quadras até o “Tronco dos Avisos”. Depois a direita e à segunda esquerda.
Heitor agradeceu, voltando para o carro. Estava prestes a entrar, quando o rapaz falou novamente:
— Cuidado depois que o sol se põe. A cidade… muda. É perigoso para pessoas como você.
O policial se virou, confuso, mas o jovem já não estava mais lá.
Heitor franziu a testa, olhando ao redor. Nada. Apenas o som abafado de folhas secas se mexendo com o vento. Balançou a cabeça antes de entrar no carro. Devia estar cansado demais. Não era hora de dar atenção a esse tipo de esquisitice de qualquer forma.
Traçou mentalmente a rota indicada pelo homem e a seguiu sem maiores problemas até a hospedaria.
No caminho, pôde ver um pouco mais da cidade. Como esperado, era pequena, cercada por uma vegetação úmida e cerrada, que crescia não apenas no solo, mas também nas paredes das casas e no fundo das janelas. No entanto, diferente dos vilarejos do interior que conhecia, aquela cidade não se perdia no passado, ela parecia assombrada por ele. Um lugar onde o tempo não havia parado, mas retorcido.
Pelos cantos, trilhos enferrujados atravessavam o mato, lembrança de um tempo em que os trens iam e vinham com frequência. Agora, vagões apodrecidos repousavam sobre a terra e as pontes — todas elas — ameaçavam ruir.
Dentro de galpões chamuscados, os esqueletos de máquinas cobertos de fuligem e poeira se amontoavam sem função. As torres de sinalização perderam as peças móveis e em algumas, só restavam os pilares de ferro fundido, inclinados ou derrubados pelo tempo e o descaso. As linhas de telégrafo haviam sido arrancadas há décadas e os cabos de aço que ancoravam todo o sistema funicular haviam desaparecido junto das máquinas a vapor que os moviam.
A ferrugem e a madeira podre faziam parte da paisagem, como as folhas, o musgo e a neblina. Ainda assim, os moradores pareciam habituados à presença de forasteiros. Turistas curiosos que são atraídos tanto pelas lendas e histórias antigas quanto pelos festivais místicos que colorem o lugar durante o outono.
A cidade tombada como patrimônio histórico tinha muito a contar, mas Heitor não estava particularmente interessado. Na verdade, a única coisa que desejava descobrir no momento era o que tinha feito para merecer tudo isso.
Depois de estacionar o carro, correu até o balcão de madeira clara, só para escutar do atendente que sua reserva tinha sido cancelada. Sem muito tato, ele informou ao policial que não havia mais quartos disponíveis e, que infelizmente, essa era a única pousada da região. Heitor não tinha energia nem mesmo para se irritar e apenas arrastou-se para fora, entrando na primeira cafeteria que encontrou — não que houvesse muitas por ali.
Escolheu uma mesa no canto e deixou o corpo escorregar sobre a poltrona rústica enquanto descobria que o café não era a única coisa com gosto de queimado do lugar.
— Puta que pariu… — Esfregou os olhos. — Alô, isso, é o Inspetor Chefe Cordeiro. Gostaria de falar com o Inspetor Cruz, por favor.
Do outro lado da linha, a recepcionista solicitava o ramal ocupado.
— Sinto muito, senhor. O Inspetor Cruz está em uma ligação no momento. Posso ajudar?
— Merda… — suspirou — a reserva que o departamento deveria ter feito para mim foi cancelada e eu estou sem lugar para dormir. Você consegue ver isso?
— S-sim, claro. Um momento.
A voz gentil de Ana escondia o nervosismo. Assim como ele, também sabia que essa era uma função do Núcleo de Apoio Operacional. No entanto, o responsável do setor não era exatamente alguém fácil de lidar e quando se tratava de Cordeiro, as coisas tendiam a ser ainda piores.
— Desculpe, senhor — disse quase que em um sussurro — O Inspetor Rodrigues afirmou que estava tudo certo com a sua reserva… mas vai verificar o que pode ter acontecido. De qualquer forma, vou deixar um recado na mesa do Ricardo, digo, do Inspetor Cruz, tudo bem?
“Filho da puta”, pensou, mas se resignou a agradecer e desligar. Não era culpa da garota que o líder do setor e ele tivessem uma rixa antiga.
— Eu só… queria dormir um pouco… isso é pedir demais?
Heitor tomou o resto do café, não porque queria, mas porque precisava. Os pensamentos estavam ficando confusos com a dor que apunhalava o cérebro e as mãos tinham começado a tremer de novo. Fechou os olhos, abaixou a cabeça e pensou que, se Deus realmente existisse, devia estar se divertindo muito às custas dele naquele momento.
— Tem uma pousada no fim da rua Treze. Quase ninguém conhece. É antiga, só que muito boa.
O policial ergueu os olhos, confuso, mas a mulher que vestia um grande casaco de tricô azul não pareceu se importar em dar maiores explicações, desaparecendo pela porta logo em seguida.
— Espera! — Heitor levantou e saiu correndo, porém não a encontrou. — Qual o problema das pessoas desse lugar?
Estava desconfiado, mas o prêmio valia o risco.
Abordou alguns transeuntes que passavam por ali, no entanto, ninguém sabia onde ficava a pousada, nem mesmo conheciam a tal rua Treze. Não podia culpá-los, a maioria eram turistas e os locais estavam ocupados demais os atendendo para cooperar.
Respirou fundo, entrou no carro e resolveu dar algumas voltas pela região. A cidade era pequena de qualquer forma. Seria impossível não encontrar o lugar.
É claro, o “impossível é só uma questão de opinião” e se dependesse de sua sorte, seria mais vantajoso procurar um dos antigos túneis desativados para passar a noite. Estava seriamente cogitando essa hipótese quando o viu, parado na frente do sobrado alto, de telhados pontiagudos.
O inconfundível Maverick 74.