O Sétimo Espelho - Capítulo 07

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A chama através do espelho

 

          — Olivia! — Heitor quase gritou.

          O coração bateu mais forte. Era ela. Sabia que era, mesmo que não conseguisse enxergar a placa do cupê a essa distância.

          Respirou fundo, diminuiu a velocidade e estacionou do outro lado da rua. Não queria chamar atenção, mas estava tão agitado que errou a marcha, deixando o carro morrer no processo.

          — Mais que merda! — Rugiu, encarando o próprio reflexo no retrovisor. — Depois de tantos anos desaprendeu a dirigir, foi?

          Não. Suas habilidades continuavam tão boas como sempre. O problema aqui era outro e ele tinha uma boa ideia de como resolvê-lo.

          “Vamos acabar logo com isso”, resignou-se depois de pentear os cabelos com os dedos, “essa ladrazinha de beira de estrada não perde por esperar”.

          Desceu do carro, arrumou a gola da camisa social e fechou o paletó escuro. Era um inspetor, afinal. Seu orgulho não o permitiria andar por aí parecendo um viciado que não dorme há três dias, mesmo que talvez este fosse o caso.

          — Sorria, Heitor. Sorria. — repetiu, apertando o punho enquanto passava pela lataria vinho do Maverick.

          Não dava para enxergar nada através dos vidros fumê, mas sabia instintivamente que Olívia não estava lá. Por outro lado, teve a impressão de que aqueles olhos verdes espreitavam pelas janelas e portas estreitas do casarão.

          Aquela pousada não combinava com o resto da cidade. Onde tudo era baixo, simples, manchado pela ferrugem e pelo mofo, o sobrado se erguia imponente, como um viajante ao chegar em terras distantes. Tinha um estilo vitoriano, com telhados pontiagudos, uma torre estreita do lado esquerdo e janelas verticais escondidas por cortinas pesadas.

          O portão negro era de ferro forjado. As grades altas terminavam em pontas de lança e pareciam estar ali para dissuadir os curiosos que, por ventura, desejassem ver além dos jardins bem cuidados.

          Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual Heitor hesitou antes de atravessar o limiar. Ou quem sabe fossem as esculturas de leões e outras criaturas — cuja forma não conseguiu identificar à primeira vista e que ladeavam a fonte de pedra no centro do jardim — as responsáveis por causar essa sensação gelada que serpenteava por sua espinha.

          A razão não importava muito, no entanto. Estava decidido a ignorar os avisos e alertas que rastejavam pelos ouvidos.

          — Com licença — disse no tom mais amigável que conhecia. — Estou procurando a dona daquele Maverick. Você saberia me dizer se ela está hospedada aqui?

          Atrás do balcão de tampo escuro, uma mulher de meia-idade o examinava através das lentes grossas de um óculos de casco de tartaruga.

          — Está. Mas a senhorita Haarieh não se encontra no momento. Gostaria de deixar algum recado?

          — Não, não é necessário. — Heitor sorriu. — Vocês ainda têm quartos disponíveis?

          Ela lançou um olhar desconfiado para o policial antes de se abaixar e procurar algo dentro da gaveta.

          — Sim, temos um quarto livre…  — Folheou uma das páginas amareladas do livro de registros. — Não, me enganei. Sinto muito. Todo o segundo andar foi reservado para uso exclusivo.

          — E não sobrou nenhum? Olha, minha reserva foi cancelada e como você sabe, não tem muitas pousadas por aqui. Então… não importa se for um quarto em reforma ou de tripulante… É só por hoje. — insistiu.

          A atendente tirou os óculos, os limpou com um pequeno lencinho branco e falou depois de colocá-los novamente:

          — Sinto muito, senhor. A senhorita foi clara sobre o segundo andar.

          Heitor a encarou por um instante antes de suspirar. Não queria se identificar como policial, mas talvez não houvesse escolha. 

          — Eu entendo que esse é o seu trabalho, mas estou investigando um caso de… — Levou a mão ao bolso, mas ao invés da carteira com o distintivo, sentiu o metal frio e os relevos delicados que o adornavam. — … roubo…

          Um arrepio percorreu o braço, subindo do dedo anelar até a nuca.

          “Como isso veio parar aqui?”.

          Sua última memória era a de largar o objeto e segurar firme o volante. Não conseguia lembrar de tê-lo procurado ou mesmo guardado depois disso. Na verdade, apenas tinha esquecido de sua existência até agora.

          O policial piscou e seus olhos azuis refletiram o brilho dourado do isqueiro. Estava absorto demais para notar a súbita mudança na postura da recepcionista.

          O rosto sem expressão se contorceu e ficou um tom mais pálido. As mãos se moveram apressadas, vasculhando a gaveta escondida atrás do balcão enquanto os ombros tremiam de leve.

          — Mil desculpas, senhor. — Fez uma reverência contida, apoiando a mão direita sobre o peito enquanto estendia a pequena chave com a outra. — A senhorita Haarieh deixou instruções bem específicas para que acomodássemos o homem que viria devolver este pertence no quarto reservado do segundo andar.

          — Como ela sabia que…?  — murmurou, encarando a chave dourada.

          — A senhorita Haarieh sempre sabe — respondeu depois de recuperar a compostura.

          Heitor sentiu aquela mesma sensação estranha de quando viu Olívia pela primeira vez. Era como se uma corrente elétrica atravessasse o estômago e acertasse os pulmões. 

          “Aqui! Está escrito na  linha do seu destino. Vamos nos encontrar em breve…”, a voz charmosa sussurrava para além das lembranças.

          — O seu aposento é o de número 9 e fica no segundo andar, no final do corredor. — A atendente o surpreendeu. — Precisa de ajuda com a bagagem, senhor?

          — Ela… — Engoliu seco. Estava cansado demais para entender o que aquilo significava. — Não, muito obrigado. Não é necessário.

          O inspetor pegou a chave, agradeceu e saiu para buscar as malas no carro.

          Foi só ao voltar e atravessar novamente o saguão da pousada que começou a perceber os detalhes. O interior, como o exterior, tinha algo de atemporal. O pé direito alto, ficava submerso numa penumbra morna, já que as luzes amareladas — vindas de abajures suspensos — serviam apenas para diluir a escuridão em sombras âmbar.

          As paredes, revestidas com papel escuro e arabescos dourados, se fundiam aos móveis pesados de mogno e preenchiam o ambiente com uma solidez opressiva.

          Tudo era antigo, mas nada velho, de fato.

          Heitor caminhou até a escadaria que fazia uma curva larga e suave antes de chegar no andar superior. Ao passar pela lareira, notou com certo desgosto o entalhe em forma de leão que a encabeçava e parecia vigiar os hóspedes com seus olhos de pedra.

          A madeira rangeu assim que pisou no primeiro degrau.

          — Senhor! — A atendente chamou em um tom urgente. — Lembre-se, essa chave pertence ao quarto no final do corredor e apenas a ele. Não tente usá-la em outras portas.

          — Claro… — respondeu com desconfiança.

          — Tenha uma boa estadia. — Acenou e se retirou, voltando para o balcão.

          “Mais que merda? Será que todos os quartos têm a mesma fechadura ou algo assim?”.

          Heitor balançou a cabeça, tentando afastar as perguntas que se acumulavam. Precisava descansar, depois pensaria sobre tudo isso.

          O corredor do segundo andar era estreito e silencioso. Não parecia que mais alguém estava realmente hospedado ali, contudo, conseguia sentir a curiosidade que escapava pelas fechaduras sempre que passava por uma das várias portas enfileiradas em ambos os lados. 

          Tentou manter os passos leves, mas as tábuas do piso continuavam a protestar com gemidos baixos sob seus pés e isso o irritou profundamente. Seria difícil se esgueirar por ali sem ser percebido, mesmo com aquela luz difusa.

          — Ah… — suspirou, parando na frente do número 9 entalhado no limiar superior.  — Pelo menos não vou precisar dormir no carro dessa vez.

          A chave dourada abriu a porta com um clique seco. O quarto era maior do que esperava.

          O teto alto, decorado com gesso, sustentava um lustre de vidro trabalhado enquanto as paredes, um tom mais claras do que as do corredor, exibiam quadros em natureza morta. Os móveis de mogno, eram talhados em madeira maciça e assim como no saguão, uma claridade morna atravessava a janela estreita, coberta por cortinas pesadas.

          O inspetor passou pela cama. O dossel estava aberto e os lençóis pareciam limpos. No criado-mudo, havia uma jarra de água e um copo virado sobre um guardanapo. Se o chuveiro fosse bom, essa seria de longe a melhor pousada em que já havia se hospedado desde que começou a trabalhar na Homicídios.

          Heitor jogou a mala no chão, tirou os sapatos e sentou-se na poltrona de canto, esfregando o rosto com as mãos. Os músculos estavam rígidos e o estômago ardia. Provavelmente por causa daquela coxinha queimada que se obrigou a engolir. Pensou que teria sorte se não amanhecesse com uma intoxicação alimentar. Riu e fechou os olhos, mas uma sensação de queda se apoderou do corpo. 

          Acordou com um sobressalto. A luz do fim da tarde atravessava a cortina em feixes inclinados. O sol já descia no horizonte e as sombras dentro do quarto começavam a se alongar pelas paredes.

          — Caralho… eu nem percebi que tinha conchila… do.

          As mãos deslizaram até a cintura e no segundo seguinte estava de pé, com a arma apontada para o homem que o encarava logo atrás da poltrona.

          — Mais que porra! — resmungou, abaixando o revólver — Como eu não vi isso?

          O espelho devia ter uns dois metros de altura e era mais largo do que a mesa de centro à sua frente. A moldura negra parecia decorada por arabescos em forma de galhos retorcidos ou serpentes, ele não conseguia entender, mas sabia que não tinha gostado. Porém, não era a estética gótica que mais lhe causava desconforto. O incômodo era  sutil. Quase imperceptível.

          No reflexo, tudo estava no lugar. Os móveis, a mala, a cama. Ele mesmo, parado diante da janela. Mas algo não estava certo.

          Heitor se aproximou.

          As pontas da cortina tremulavam de leve no espelho, dando a impressão de que uma corrente de ar passava ali por baixo. No entanto, ao olhar para o lado, percebeu que o tecido grosso continuava estático, quase aderido às paredes.

          Chegou mais perto. Apertou os olhos.

          A cortina do reflexo balançava devagar, uma ondulação tão delicada quanto a respiração de alguém que dormia  — ou fingia dormir.

          Virou-se de novo. Nada. O véu branco continuava inerte.

          Olhou outra vez para o espelho. A luz estava diferente. Através do vidro, o quarto parecia mais escuro, como se o sol já tivesse se posto há muito tempo. A diferença era mínima. Mas estava lá.

          — Deve ser o cansaço… — murmurou esfregando o rosto.

          Foi até o criado-mudo e encheu o copo d’água, depois voltou e puxou o isqueiro de dentro do bolso do paletó. O observou por alguns instantes antes de girar a tampa.

          A chama oscilou.

          — Laranja?

          Ergueu o objeto até a altura dos olhos e seu reflexo repetiu o movimento, mas algo estava diferente. O fogo que brilhava daquele lado, cintilava entre o verde e o azul.

          — Será que é por causa do vidro? — O policial focou nas centelhas alaranjadas que iluminavam o quarto. — Só pode ser isso…

          Mas não era. A cama iluminada pelas chamas esverdeadas estava desfeita e os lençóis embolados, jogados ao chão, parecia que alguém havia acabado de sair dali às pressas.

          Heitor se virou de imediato. A cama intocada atrás de si.

          Voltou os olhos para o espelho.

          Os lençóis arrumados, impecáveis como quando chegou.

          Ficou parado por alguns segundos, tentando ouvir alguma coisa além do som do próprio sangue nos ouvidos. Nada. Tudo estava exatamente igual, incluindo o silêncio que pairava sobre o cômodo.

          — Mais que merda foi essa?

          O inspetor piscou algumas vezes enquanto varria os cabelos. O dia tinha sido longo demais, só isso. Qualquer pessoa ficaria confusa depois de passar por todas essas coisas. Não tinha nada de errado com ele, afinal.

          Tudo o que precisava agora era de um banho e uma noite bem dormida. Amanhã daria um jeito de conseguir novos comprimidos e focaria em resolver esse maldito caso. 

          O plano guiou os pensamentos confusos e depois de deixar que a água quente fizesse sua mágica, sentiu todo o cansaço empurrar o corpo pelo quarto de volta para a cama. Antes de deitar, porém, jogou um dos lençóis extras sobre a moldura negra. Era melhor assim.

          Pegou o isqueiro que estava sobre a mesa, girou a tampa e depois a fechou, apagando o fogo alaranjado. 

          Tudo ficaria bem.

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