O Sétimo Espelho - Capítulo 08
Ele
— Heitor! Acorda! — A voz familiar soou aflita. — Vamos, Heitor! Acorda logo!
— Não… me deixa dormir mais um pouquinho. — Puxei os lençóis e virei para o outro lado.
— Por favor, Tinho. Ele… tá aqui de novo! Eu tô com medo.
Um arrepio súbito me despertou por completo. Laura não precisou dizer mais nada. Ambos sabíamos o que “Ele” significava, mesmo que nunca o tivéssemos visto de verdade.
Apertei a ponta do edredom, cobrindo o rosto. Meu coração estava tão acelerado que doía. Encostei o pulso no ouvido e tentei contar até sete, prendendo a respiração como meu pai tinha ensinado, mas não adiantou muito. Era como se o estômago estivesse afundando em um vazio amargo enquanto os pulmões se enchiam de fel.
Talvez, se eu fingisse que ainda estava dormindo, ou quem sabe se me esforçasse muito para voltar a dormir…
— Heitor, por favor! — ela suplicou em prantos.
Dentro daquele quarto escuro, suas palavras cortavam mais do que o frio mórbido que arranhava meus ossos. Mesmo assim, hesitei. Apertei os olhos e tapei as orelhas com força, me encolhendo debaixo das cobertas.
Eu sabia o que iria acontecer se levantasse e atravessasse a porta. Afinal, essa não era a primeira, nem a segunda vez em que os gritos chorosos de Laura me arrastaram de volta ao passado. No entanto, foi a única em que permaneci consciente sobre a realidade e isso me apavorou mais do que todas as outras.
“Ah… Você é mesmo uma farsa, Inspetor Cordeiro…”.
Um sentimento complicado atravessou as lembranças, me fazendo saltar e correr até o quarto ao lado.
— Laura! — A voz soou grave demais para um garotinho de oito anos, então percebi minha altura e o tamanho das mãos que agarravam o batente de madeira.
Tudo parecia igual 25 anos atrás, mas ao mesmo tempo diferente.
Sentada em uma cadeira rústica, de costas para a janela, a pequena balançava as pernas sem tocar o chão. O quarto estava escuro demais, mas eu sabia quem era a dona daquele vestidinho bordado com flores brancas.
— Você viu também… mas mentiu. Porque não contou a verdade? — Ela fungou, sem levantar a cabeça, distraída com alguma coisa que girava entre os dedos.
— M-me perdoa… — sussurrei, dando um passo à frente. — Eu só… ainda não sou tão corajoso.
As barras da cortina ondularam preguiçosas, fazendo com que a luz difusa que atravessava o tecido desenhasse sombras inclinadas pelo chão. Ainda não conseguia ver o rosto de Laura, nem aquilo que segurava com tanto cuidado, mas algo não estava certo.
Cheguei mais perto.
Uma sensação de déjà vu apunhalou meu coração. Não consegui ficar de pé.
— L-Laura… — Rastejei de joelhos até alcançar as mãozinhas ensanguentadas.
— Você demorou muito, Tinho. — Ela inclinou a cabeça o suficiente para que a luz contornasse o sorriso rasgado em seu rosto e as duas linhas escarlates que desciam das órbitas vazias. — Ele já atravessou o espelho.
— Q-quem… quem fez isso com você? — solucei, tentando limpar as bochechas manchadas.
Ao longo de todos esses anos, não conseguia contar em quantas cenas de crimes já havia trabalhado ou quantas delas eram tão grotescas a ponto de fazer um policial veterano vomitar. Contudo, nada do que experienciei até hoje foi capaz de me preparar para enfrentar algo assim.
Minha cabeça girava e o coração batia com tanta força que era difícil respirar.
“É só mais um pesadelo, Heitor, mantenha a calma. Você já vai acordar!”, repeti mentalmente, tentando me agarrar a esse fio de sanidade.
Laura murmurou alguma coisa, soltou a pequena coleira rosa com a qual esteve brincando e apontou para o escuro atrás de mim. Senti um arrepio frio descer pela espinha e um cheiro podre invadiu o cômodo quando virei e dei de cara com o meu reflexo sorrindo através do espelho de moldura negra.
— Mas como? — Levantei e o outro “eu” fez o mesmo.
Senti um ímpeto estranho. Parecia que alguma coisa se debatia por debaixo da pele. Algo que sempre esteve ali, mas que eu não tinha percebido até então.
Toquei meu rosto e ele imitou perfeitamente o movimento.
Dei um passo, outro e mais um. Era irresistível. A cópia perfeita que sorria enquanto o original chorava feito criança.
— Quem é você? — Forcei as palavras para fora.
O reflexo inclinou a cabeça, suspirando. Essa não era a pergunta certa e ambos sabíamos disso. Cheguei mais perto ao ponto de sentir a respiração que batia no vidro e voltava para mim, então, sussurrei:
— Foi você quem fez isso com ela?
Ele abriu um sorriso tão grande, que os olhos azuis se transformaram em dois riscos finos.
Tremi.
O reflexo gargalhou em silêncio e pude sentir seu olhar se fixar no bolso dianteiro da minha calça.
Tudo o que conseguia ouvir era o som alto das batidas do coração ressoando pelos tímpanos. Não havia pensamentos, nem lógica. O mundo não passava de um borrão escuro que girava e consumia minha alma.
Chorei. Rezei. Implorei para acordar daquele maldito pesadelo. Foi em vão.
Meu rosto risonho continuava encarando o volume que preenchia o bolso. Esse era o preço. Eu sabia. Já tinha percebido, mas não queria acreditar.
— Não… eu nunca faria isso. — Respirei fundo, as lágrimas rolavam sem fim.
Ele riu do meu desespero.
Sua mão deslizou para dentro do bolso e eu parei de respirar ao perceber que meus dedos tocaram em duas pequenas esferas, macias e úmidas.
— Já chega! — implorei, puxando o braço para longe.
Mas o reflexo balançou a cabeça. Não era o suficiente.
Caí de joelhos, tampando o rosto. “Por favor, por favor, por favor!”, repeti mil vezes.
“Tente de novo”.
Uma voz distante soou de dentro da minha cabeça, mas também vinha dali, daquele quarto, atrás de mim. O rosto sorridente se contorceu em pavor, puxando a mão como eu havia feito alguns segundos antes.
Virei, não havia mais ninguém sentado na cadeira. Voltei meus olhos para o espelho e o reflexo também tinha desaparecido, deixando para trás as duas orbes manchadas de sangue sobre o carpete e um pequeno gato preto que as observava de onde Laura esteve até segundos atrás.
Engoli seco. Senti os pelos macios roçarem em meus dedos, quando o felino saltou da cadeira e passou por mim, ainda que nossas imagens não estivessem sobrepostas naquele lugar.
Ele caminhou elegante até as íris esverdeadas, se abaixou, puxou os dois nervos que pendiam dos globos com a boca e partiu além do espelho.
— Não… você não pode… Isso é uma evidência…
Engatinhei até a moldura, mas ele continuou se afastando.
Estendi a mão, como se soubesse que era isso o que precisava fazer. Meus dedos atravessaram a superfície gelada e um ardor indescritível subiu pelos nervos. Puxei a mão com toda a força que tinha, mas o vidro escorreu sobre meus músculos, engolindo e queimando a pele.
Tentei pedir ajuda, mas a voz foi abafada, derretida pelo metal líquido que já havia alcançado meu rosto e agora descia pela garganta. Estava perdido, imerso em dor e agonia, porém, o que mais me torturava era o fato de que nada tinha mudado. Eu continuava o mesmo covarde.
“Você viu também…”, a voz doce de Laura guiou o metal incandescente através dos meus tímpanos.
— Não… Eu não… — tossi as palavras misturadas em sangue e vidro.
“Porque não contou a verdade?”, ela continuou acusando.
Eu podia sentir o cérebro derretendo enquanto espasmos involuntários contorciam os membros e minha sanidade. As palavras ficaram presas dentro da massa disforme de carne, sangue e metal fundido que se formou na traqueia, mas não foi isso que me impediu de responder às provocações.
“Me perdoa…”, era tudo o que eu sempre quis dizer, mas o remorso e a culpa eram tão corrosivos quanto líquido quente que agora preenchia meus pulmões.
“É tarde demais, Tinho”.
“Não”, gritei em silêncio, arranhando a pele consumida pela brasa.
“Você precisa continuar sem mim”.
— Não! — O ar rasgou a garganta, enquanto o vidro pastoso escorria pelas órbitas derretidas.
Uma dor aguda sacudiu minha cabeça e então, tudo se partiu.
***
Heitor acordou com o impacto seco das costas contra o chão. Olhou ao redor, estava caído ao pé da cama, agarrado ao lençol que usou para cobrir a moldura na noite anterior.
O peito arfava de forma dolorosa. O corpo inteiro tremia e um suor gelado molhava desde as têmporas até o pescoço. Por um instante, pensou que continuava preso dentro do espelho. Mas não, estava ali. De volta à realidade, ainda que o quarto escuro parecesse o mesmo de tantos anos atrás.
— Ah… Meu Deus… — Esfregou o rosto ao notar as horas que brilhavam em vermelho no despertador. — Eu não aguento mais iss…
— Senhor? — Uma voz feminina acompanhou as batidas fracas atrás da porta. — O senhor está bem?
O inspetor piscou algumas vezes, tentando entender.
— Um dos hóspedes ligou para a recepção informando que ouviu gritos vindos deste quarto — ela continuou.
— Certo… — Heitor levantou depois de se livrar dos lençóis embolados pelo corpo. — Só um minuto.
Antes de abrir a porta vestiu uma blusa e puxou o revólver guardado debaixo do travesseiro, o escondendo atrás das costas.
— Desculpe, senhor, mas eu precisava verificar se está tudo bem.
— Eu que peço desculpas — falou sem graça — tive um pesadelo e acabei exagerando.
Ela olhou discretamente para dentro do quarto bagunçado. Heitor seguiu seu olhar e estava prestes a dar uma explicação quando o viu, saltando da cadeira.
— Mas o quê diabos…?
— Me perdoe, senhor. — A mulher se abaixou, pegando o felino no colo. — Ele pertence a um dos hóspedes. Acredito que tenha entrado no quarto errado. De qualquer forma, peço desculpas novamente por interromper sua noite.
Ela se virou e saiu enquanto o inspetor tentava processar o que tinha acabado de acontecer.
— Eu ainda estou sonhando?
Depois disso não conseguiu dormir.
Andou pelo quarto, desfez a mala, tomou banho e trocou de roupas. Teria tomado seus comprimidos em seguida, mas o incidente do carro havia atrapalhado a rotina paliativa com a qual estava acostumado.
Ainda era cedo demais para sair por aí, então ocupou o tempo organizando as roupas nos cabides e gavetas. Também aproveitou para passar os paletós amarrotados durante a viagem. Quando terminou, abriu as cortinas e, para sua surpresa, atrás dos tecidos engomados não havia uma janela e sim uma porta estreita que dava em uma pequena sacada rodeada por balaústres de concreto.
— Ele deve ter entrado por aqui… — pensou em voz alta.
Os primeiros raios de sol tremulavam tímidos em meio a névoa e, mesmo que não pudesse ver, ouvia a movimentação das pessoas que transitavam pela rua lá embaixo.
Com um misto de alívio e cansaço, pegou os documentos e a chave do carro. Teria um dia cheio e isso deveria ser o bastante para afastar os pensamentos confusos que borbulhavam na mente. Deu uma última olhada para a cadeira vazia antes de trancar a porta e caminhar apressado pelo corredor.
“Tenho que dar um jeito de conseguir mais remédios. Também preciso encontrar um mecânico para trocar o retrovisor e um…”
— Inspetor Cordeiro, suponho. — O homem alto e esguio aguardava no primeiro degrau da escadaria. — Reconheci pelos olhos.
Um calafrio percorreu a espinha do policial e foi inevitável confirmar que o bolso estava mesmo vazio. Diante do espanto o outro continuou:
— Me desculpe. Onde estão meus modos? — Estendeu a mão. — Eu sou o investigador encarregado no caso dos desaparecimentos do parque. Me chamo Ramon Ferreira. É um prazer te conhecer!
— O prazer é todo meu. — Retribuiu o gesto. — Pode me chamar de Heitor.
O outro policial tinha a pele morena, marcada por cicatrizes finas que desciam pelas bochechas até o pescoço e apesar do semblante gentil, algo animalesco brilhava por detrás das íris cor de âmbar.
— Sem formalidades desnecessárias! Gostei disso. — Apontou o caminho da porta e continuou. — Fiquei sabendo que fez uma viagem complicada, conseguiu descansar?
— É… — Heitor sorriu sem graça ao passar pelo carro com o retrovisor arrancado. — Foi uma longa viagem, mas nada que um banho quente não tenha resolvido.
Ramon concordou balançando a cabeça enquanto mostrava o caminho até uma caminhonete cinza chumbo estacionada do outro lado da rua. Era lá que o maverick vinho deveria estar e a quebra de expectativa azedou o humor do inspetor.
— O delegado Silva pediu para que eu te acompanhasse até a cena do crime. Não que seja muito difícil chegar no parque, mas o caminho até as minas é meio complicado.
— Entendi — respondeu sem muito entusiasmo, atravessando até o lado do carona.
Assim que Heitor tocou na maçaneta da caminhonete, um arrepio frio eriçou os pelos do braço, subindo até a nuca. Virou para trás, passando a mão por debaixo do paletó, mas não havia nada além de um canteiro com arbustos floridos ali.
— Está tudo bem? — Ramon perguntou ao bater à porta.
— Sim… — Deu uma última olhada ao redor antes de entrar no carro. — Tudo bem.
O policial designado era mais tagarela do que Heitor gostaria, mas isso foi surpreendentemente útil para dissolver os pensamentos estranhos que rondavam a cabeça. Durante o trajeto até as minas, conversaram sobre o andamento do caso, suspeitos em potencial e teorias conspiratórias que mais pareciam um roteiro de filme de terror de baixo orçamento.
— Pois é, inspetor. — Ramon desligou o carro. — Eu sei que não é muito fácil de acreditar… ainda mais para alguém da capital, mas seria melhor se você tentasse manter a mente aberta para certas… coisas enquanto estiver por aqui.
Heitor o encarou por alguns segundos, mas não havia sinais de que estava brincando. Naquele momento, entendeu que a resolução do caso dependia exclusivamente de quanto tempo conseguiria se manter são nesse fim de mundo. Tentando esconder o desgosto por trás das palavras, respondeu:
— Vou me lembrar disso.
— Ótimo! — O homem continuou animado. — Mantenha esse conselho em mente e tenho certeza que vamos nos dar muito bem!
O inspetor forçou um sorriso. Agora que estavam ali, ignoraria todas as besteiras do outro e mostraria de forma prática como uma investigação séria deveria ser conduzida.
Satisfeito, moveu os dedos até o ponto de encaixe do cinto de segurança, mas o olhar foi atraído para o retrovisor interno no meio do caminho. Algo além do próprio reflexo o observava do banco de trás. Heitor arregalou os olhos e girou o pescoço, porém, o banco do passageiro estava vazio.
Um calafrio percorreu a espinha quando finalmente se deu conta do peso quente e macio que se espalhava preguiçoso sobre seu colo.
Ele abaixou a cabeça, incrédulo, mas não havia nada além das mãos vazias ali.
O coração acelerou e um gosto amargo subiu pelo estômago. Estava acordado desta vez, tinha certeza. Também não estava sozinho ou no escuro para simplesmente começar a alucinar desse jeito. Pensou em perguntar ao outro se ele também estava vendo aquilo, mas desistiu, já sabia a resposta.
Sentiu os pelos roçarem entre os dedos e o movimento suave das patas quando se apoiaram em pé, mesmo que não pudesse vê-las. No retrovisor, o pequeno felino negro caminhava despreocupado até a janela traseira.
Ele dispensou um breve olhar ao policial antes de se esgueirar pela fresta.
— Ei, tá tudo bem? — Ramon chamou preocupado. — Você parece meio pálido.
— Tá… Acho que está sim.
Ao que tudo indicava, Heitor tinha mesmo conseguido escapar daquele pesadelo, mas não sozinho.