O Sétimo Espelho - Capítulo 09
A Dama-da-noite
Aquela sensação ainda pinicava nas pontas dos dedos quando Heitor desceu da caminhonete, e foi inevitável dar uma volta ao redor antes de aceitar que aquilo não passara de uma ilusão.
— Tem certeza que está bem? — Ramon o observava com certa desconfiança.
— Eu só… pensei ter ouvido um miado.
Ferreira coçou a barba por fazer e por um instante, Heitor pensou tê-lo visto encarar o banco de trás pela janela.
— Você também…
— Tem muitos gatos de rua soltos no parque — Ramon interrompeu. — Me dá um segundo? Preciso fazer uma ligação.
Cordeiro assentiu e o outro se afastou, caminhando pelo meio-fio.
A estrada de terra vermelha terminava em um portão de grades altas, ladeado por muros tomados pela hera e arbustos espinhosos. Nada muito diferente da paisagem que vinha acompanhando os policiais há algum tempo, a não ser pelo fato de que, até o ar que escapava pelas trincas do paredão de concreto era denso e sombrio.
— Mas que lugarzinho agradável… — Heitor debochou, seguindo o contorno das trepadeiras secas que se contorciam entre as hastes enferrujadas.
Algo naquela composição soava estranhamente familiar, mas não conseguia distinguir o quê. “Em um filme… ou em um sonho, talvez?”, os pensamentos guiaram os passos até a entrada. “Onde foi que eu vi isso antes?”.
Seus dedos deslizaram pelos arabescos escondidos sob as camadas de poeira. O cadeado que atava as pontas da corrente era antigo, mas a cor dourada não havia sucumbido ao tempo. De fato, era a única peça naquele lugar que desafiava os tons de verde e marrom que corroiam tudo dentro e fora da cidade.
Deu um passo à frente, mas antes que sua mão alcançasse o metal, sentiu um movimento atrás de si. Virou-se rápido. Nada. Nenhuma alma por perto, exceto pela figura que continuava no telefone. Ainda assim, aquela sensação incômoda rastejou por sua espinha como um fio solto de cabelo.
O vento gelado soprava as copas das árvores, desenhando sombras vivas pela estrada enquanto os galhos retorcidos rangiam dentro dos muros.
Heitor se recriminou em silêncio. Não era o momento para deixar que os pesadelos o afetassem. Especialmente aquele. Mas parecia impossível afastar da mente a imagem de Laura sentada na cadeira. O pequeno e delicado rosto sem olhos, apenas buracos escuros, úmidos, mirando o vazio.
A lembrança veio com tanta nitidez que seu estômago revirou e a cabeça pareceu girar por um instante. O inspetor fechou os olhos, apoiando uma das mãos no portão enquanto esfregava as têmporas com a outra.
“Já sonhei com aquele dia milhares de vezes. Mas nunca assim. O que está acontecendo comigo?”.
Os questionamentos se perderam quando ouviu o estalo seco seguido de um tilintar metálico abaixo dos dedos. Sua atenção foi capturada de novo pelo cadeado que pendia frouxo sobre as correntes.
Estava aberto.
Heitor deu alguns passos para trás. O coração palpitava com a sensação de que havia ultrapassado a linha e tocado o inevitável. O mundo ao seu redor pareceu sentir o mesmo e dentro daquele silêncio agourento, nem mesmo o vento ousou murmurar novos pesares. Todas as folhas secas caídas no chão, os galhos das árvores e até os animais. Todos ficaram imóveis.
— Merda… — Forçou as palavras por entre os dentes. — Agora não…
O inspetor virou-se de súbito. Não podia deixar que Ramon o visse desse jeito. No entanto, o policial não estava mais lá. Ou talvez estivesse. Tudo o que conseguia ver era uma sombra desfigurada se aproximando devagar.
Ele fechou os olhos e riu. Finalmente aconteceu. Havia enlouquecido por completo, mas por sorte, estava bem longe de qualquer um com quem já se importou de verdade. E apesar de estar aliviado, não conseguia deixar para trás essa sensação de abandono que queimava o dedo anelar.
— Não! — Abriu os olhos, apertando o punho. — Ainda preciso fazer com que aquela vigarista me pague.
Uma brisa amena soprou as folhas do alto das árvores, fazendo com que pequenas flores brancas rodopiassem para além das grades enferrujadas. Algumas caíram aos seus pés, mas uma delas girou sem pressa diante dos olhos antes de deslizar pelo ombro e pousar de forma sutil sobre o bolso do paletó.
Heitor a pescou com as pontas dos dedos e depois de observar a delicadeza das pétalas a levou até o nariz.
— O cheiro é bom, né? — Ramon disse, tão próximo que Cordeiro quase puxou o revólver da cintura.
— Que merda… — murmurou ao perceber que o mundo havia voltado a girar.
Ferreira deu um passo à frente e com um movimento furtivo, mas gentil, capturou a mão do inspetor, a levando até o próprio nariz.
— Tem gente que acha enjoativo, mas eu gosto do perfume da Dama-da-noite.
Heitor puxou o braço, levantando uma sobrancelha. Não sabia se estava mais incomodado com essa intimidade inesperada ou com a habilidade silenciosa que todos naquela cidade pareciam ter ao se aproximar.
— O cadeado está aberto. — Enfiou a mão no bolso. — Por que não entramos de uma vez?
— Ah, Inspetor… — O policial pareceu decepcionado. — Aqui não pega bem só ir entrando na casa dos outros sem ser convidado.
— Como é? — Franziu a testa, irritado. — Do que você está fal…
Do lado de dentro dos portões, uma porta rangeu e um homem de cabelos grisalhos e camisa de linho esverdeada desceu os degraus com passos curtos.
Apesar de interditado, o parque estava bem cuidado. O caminho de pedras que levava até a casa principal foi limpo recentemente e mesmo com toda a ventania, não havia folhas espalhadas pela recepção de tijolinhos à mostra. As janelas de madeira estavam abertas e por elas escapava um cheiro adocicado de café recém-passado.
— Seu Jorge, há quanto tempo! — Ramon caminhou até ele com um sorriso largo.
O velho o recebeu com um abraço caloroso.
— E o Daniel? Tá melhor? — Sua voz rouca carregava o sotaque forte do interior.
— Tá indo… Teimoso como sempre.
— E esse jovem bonitão aqui? — O senhor perguntou, olhando para Heitor. — Você não é dessas bandas, né? Gente bonita assim não nasce por aqui há pelo menos uns… 50 anos?
Ramon riu da bravata.
— Heitor — disse, estendendo a mão — Inspetor chefe Heitor Cordeiro. Sou o novo responsável pela investigação do caso do parque.
— Jorge Amaral. — O velho apertou firme, mantendo o olhar por tempo demais. — Eu cuido do parque há mais de trinta anos. Entrem, por favor.
O inspetor soltou a mão com certa pressa. Algo naquele toque ou talvez no olhar do homem o deixou em alerta, mas não saberia dizer exatamente o que era.
— Vamos rapaz — Jorge convidou. — Se não, o café vai esfriar.
Heitor concordou, subindo os degraus de pedra logo atrás do outro.
A recepção era aconchegante e rústica. Um pequeno museu com objetos antigos dispostos em vitrines de vidro, fotografias emolduradas e ferramentas desgastadas que repousavam em mesas de madeira maciça. As araras compridas faziam uma comparação eficaz entre a nobreza e as classes mais pobres. Colocando no mesmo espaço vestidos, calças e blusas bufantes, além de chapéus emplumados e peças muito mais simples de flanela surradas em tons de marrom.
Tudo estava limpo e conservado, no entanto.
Os três seguiram para a sala adjacente, passando por um corredor cheio de fotografias antigas quando uma chamou a atenção de Cordeiro. Na imagem preto e branca, um conjunto de homens negros pousava para a foto de cima de andaimes amarrados de forma precária às rochas escuras.
— “Trabalhadores dentro de uma mina, 1888.” — Jorge recitou ao se aproximar. — Você tem bons olhos, inspetor.
— Esse cara… — Ele apontou para o que observava a câmera por debaixo de uma boina puída. — Parece familiar.
— Essa imagem foi usada em livros escolares — o senhor continuou — é um registro raro. A maioria das fotos dessa época idealizavam a escravidão. Essa se propôs a mostrar a realidade do trabalho dos mineiros.
Heitor observou mais um pouco. A lembrança que tinha não era estática como a de um homem em uma gravura de livro. Era algo mais vivo.
— Vocês podem sentar aqui, já volto. — O homem grisalho indicou a mesa rústica do salão.
— Não, obrigado. Estamos com pressa. — Recusou ainda olhando para a fotografia.
— Calma, Inspetor — Ramon desabotoou o paletó, se esparramando na cadeira. — Esse café vem com histórias que você vai gostar de ouvir.
Cordeiro não tinha muita alternativa, então resignou-se a aceitar a hospitalidade desnecessária.
Jorge voltou animado com uma garrafa de café e algumas xícaras. Colocou-as na mesa, saiu e retornou de fato com alguns pratinhos e um bolo de cenoura. Depois de servir os convidados, contou algumas histórias, incluindo a dos Courá, descendentes de africanos escravizados que mantinham tradições vivas nas montanhas da região.
Heitor folheava os arquivos da abertura do parque e dos estranhos acidentes que marcaram seu declínio enquanto o velho tagarelava. Havia um padrão de datas, mas ainda era cedo para confirmar.
— Então algumas áreas eram usadas em rituais? — perguntou ao virar uma das folhas amareladas.
— Sim, mas nada sombrio. — Jorge se apressou em explicar. — A religiosidade deles é resistência, não violência.
O inspetor não se convenceu.
— Sabe quem também tinha um discurso pacifista? O Heaven’s Gate, People’s Temple, Seita de Altamira… — Enumerou de forma cínica.
O clima na sala esfriou, mas Jorge preferiu amenizar:
— Desconfiança é necessária, inspetor. Mas nem tudo que é antigo é sinistro.
— É, quem sabe… — Assentiu, recolhendo os arquivos. — Posso levar isso aqui?
— Claro. São cópias.
O inspetor juntou a pilha e se levantou:
— Podemos ir às trilhas agora?
Jorge consultou o relógio antes de dizer:
— Não quer mais um pedaço de bolo antes de ir? Não faz mal para vocês jovens comerem tanto açúcar, mas para um velho como eu, sabe como é, né?
Heitor suspirou irritado.
— Não, obrigado. Nós já estamos bem atrasados.
Estava prestes a sair quando Ramon esticou o braço, bloqueando a saída.
— Só mais cinco minutinhos, inspetor. Não seja tão rude.
Cordeiro franziu as sobrancelhas ao encarar a mão que descansava suave, mais incomoda, sobre o paletó. Ferreira sentiu o perigo e o soltou, desamassando o tecido como um pedido de desculpas, mas ele não deixaria passar desta vez.
Heitor deu um passo à frente, largando os papéis sobre a mesa.
— O que você pensa que está fazendo? — disse entre dentes. — Obstruir uma investigação policial é crime e você deveria saber disso muito bem, investigador.
— Calma ai, Heitor… Nós passamos aqui para conversar sobre fatos relevantes ao caso, não é mesmo? — Ferreira esquivou.
— Ótimo! Se é assim, já conversamos mais que o suficiente. Agora, me levem até a mina onde o corpo foi encontrado.
Jorge pegou os papeis jogados na mesa, os empilhando enquanto trocava um olhar apreensivo com Ramon. Este, por sua vez, espiou discretamente pela janela antes de virar para o guia e assentir com a cabeça.
— Você está certo. — O velho suavizou as rugas na testa. — Agora podemos ir.
Heitor estreitou os olhos, repetindo a palavra que o incomodou:
— Agora?
O policial piscou um olho, quase cúmplice, mostrando o caminho da porta:
— Tinha uma hora certa pra isso, lembra?
Cordeiro o encarou por alguns segundos, tentando decifrar a atitude suspeita, mas o outro apenas sorriu ao passar pelo limiar. Do lado de fora, notou que o vento continuava trazendo as flores brancas para dentro do parque e que elas agora formavam uma linha quase perfeita ao longo de uma das trilhas laterais. No geral, não parecia nada demais, mas se observasse com atenção, apenas as pétalas maculavam o chão varrido.
Era quase como se estivessem ali para indicar um caminho escondido à vista de todos.
Pela primeira vez, uma ideia impossível, mas terrivelmente tentadora passou pela cabeça de Heitor: “E se esses sinais não forem apenas uma coincidência? Seria possível que tudo o que acontecera até então não tivesse sido apenas imaginação?”.