O Sétimo Espelho - Capítulo 10
Zona Morta
— O que foi, inspetor? — Ramon sorriu de forma cínica. — Não era você quem estava com pressa de ir até as minas? Porque continua parado aí dentro?
— Podem ir na frente. — Heitor abriu o primeiro botão da camisa social. — Só preciso enviar uma mensagem e já alcanço vocês.
Os homens concordaram, seguindo pela rua de paralelepípedos que ligava a entrada às outras áreas visitáveis do parque.
— Tenho que dar um jeito nisso e rápido — murmurou apoiado na parede, enquanto se esforçava para recuperar o fôlego — os sintomas estão piorando.
O coração batia acelerado e o ar descia queimando até os pulmões como se tivesse acabado de voltar de uma escalada ou algo do tipo. Não era uma sensação nova, no entanto, apesar de estar se tornando algo muito mais intenso e rotineiro.
— Não diga “alô”, diga “como vai Galisteu” após o “bip”. — A voz animada cantarolava na caixa postal.
— Esse filho da puta! — Heitor esfregou o rosto. — Seu arrombado, sei que tá de folga hoje, então dá uma olhada nas mensagens que te mandei mais cedo. Tem algo muito estranho rolando e a polícia daqui tá metida nisso. Então não enrola, beleza?
O inspetor encerrou a chamada, ligou o gravador e o colocou no bolso interno do paletó. Estava com “aquela” sensação.
Graças a essa espécie de pressentimento, tinha escapado da morte algumas vezes, saindo ileso de tiroteios e até de uma emboscada no ano anterior, o que rendeu alguns apelidos como Dominó e outros ainda menos agradáveis. Como não podia deixar de ser, a maior parte deles foi dada por Ricardo e por essa razão, o inspetor não se importava muito em atrapalhar o dia de folga do outro quando se tratava de casos assim.
— Dia 22 de setembro de 2025, nove horas e três minutos. Acompanharei duas pessoas de interesse até a cena do crime em questão. Para que conste: Ramon Ferreira, investigador da polícia local, e Jorge Amaral, curador do museu do parque do Anhangaba.
Logo depois, Heitor se juntou aos outros e o grupo seguiu por cerca de trinta minutos pelas vielas estreitas que ligavam várias áreas do parque. Jorge liderava e fazia comentários animados, mesmo que o inspetor não demonstrasse muito interesse.
Na verdade, Cordeiro estava mais preocupado em traçar um mapa mental da região, considerando rotas de fuga e também possíveis esconderijos onde um assassino poderia espreitar as vítimas em potencial.
— Chegamos no final da área de livre circulação do parque, Heitor. — Jorge apontou para a placa amarela de advertência. — Incentivamos fortemente que o restante do caminho seja feito apenas na companhia de um guia.
O inspetor deu uma olhada ao redor. Com exceção da placa, não havia barreiras físicas e mesmo que os caminhos de pedra se encerrassem ali, era bem fácil seguir pelas trilhas batidas no chão de terra vermelha.
Ramon adivinhou o que o outro estava pensando e comentou:
— Não temos efetivo suficiente para patrulhar o parque inteiro e também seria inviável cercar toda essa área. De qualquer forma, as trilhas deste lado são bem tranquilas e muitas pessoas da região vem aqui para passear com a família.
Jorge pegou um graveto caído no chão e começou a desenhar na terra:
— Veja, Heitor. O parque é dividido em três partes. A primeira, é essa em que estamos agora. A segunda, é onde vamos entrar. Está fora do circuito livre, mas ainda é bem acessível mesmo sem um guia. Como Ramon disse, as pessoas vão lá para pescar, nadar ou visitar a cachoeira.
Ferreira concordou com a cabeça.
— Já a terceira… — Jorge continuou — É a área das minas em si. É uma parte bem mais difícil de chegar e requer certos conhecimentos. A vegetação é mais densa e o caminho bem mais traiçoeiro. Mesmo assim, ainda é possível chegar sem muitos problemas se você sabe por onde passar.
— Sorte sua, inspetor. — Ramon sorriu ao ultrapassar a placa. — Não tem ninguém que conheça melhor esses caminhos do que o velhote aqui.
— Quem você está chamando de velhote? — Jorge jogou o graveto na cabeça do policial. — Volta aqui, vou te ensinar a respeitar os mais velhos, seu vira latinha sem vergonha.
— O doutor vai brigar contigo se eu ficar com uma cicatriz — disse, esfregando o topo da cabeça.
— No meio de todas essas? Ele não vai nem notar e se perceber vai me dar razão.
Heitor mostrou interesse na conversa pela primeira vez, apertando o passo:
— Doutor? Vocês são próximos do médico da região?
— Próximos…? — Ramon fez uma cara suspeita. — Eu diria que somos bem próximos. Porque, inspetor?
O guia revirou os olhos, balançou a cabeça e passou na frente do grupo, resmungando algo sobre a falta de vergonha do policial.
— Eu tô precisando pegar uns remédios, mas esqueci a receita em casa. — Cordeiro deu um sorriso falso. — Poderia me passar o contato dele, por favor?
— Claro… mas, posso perguntar de que tipo de remédio estamos falando?
Heitor levantou uma das sobrancelhas e o outro emendou dando de ombros:
— Não me leve a mal, inspetor. Não precisa dizer se não quiser… só ia enviar uma mensagem pro Dani de uma vez, para ver se ele podia te ajudar…
Cordeiro encerrou de forma cínica:
— Obrigado, mas prefiro não te incomodar com isso. Já vai ajudar muito me passando o contato.
O policial local o encarou por um segundo antes de dar uma gargalhada alta.
— Que desconfiado… tudo bem. Anota aí.
Heitor salvou o número enquanto seguiam pela trilha rodeada por arbustos e mato baixo. Jorge, mais à frente do grupo, continuava a falar sobre as histórias dos antigos moradores da região, enquanto Ramon murmurava palavrões, sempre que passavam por alguma lata de cerveja ou sacos plásticos jogados entre as raízes das árvores.
— É por isso que o parque devia continuar fechado. Esses turistas não têm o mínimo de respeito pelo lugar.
— Você é contra a reabertura? — O inspetor se aproximou.
— É claro. Se dependesse de mim, não teria tido uma abertura, para início de conversa.
Foi a primeira vez em que o tom amigável do investigador vacilou e Heitor não deixou escapar.
— Entendo, mas pelo que li, o turismo que o parque traz tem feito bem a região.
— Tem várias outras formas de ganhar dinheiro às custas da história da cidade, inspetor. Não tem a menor necessidade de mexerem com um lugar que é considerado sagrado para algumas pessoas.
Jorge concordou com a cabeça ao suspirar, mas Ramon não conseguia disfarçar a raiva. O que atraiu ainda mais a atenção de Heitor.
— Parece que o prefeito discorda disso — provocou.
— Ele e o avô são farinha do mesmo saco. — Jorge deu de ombros.
Cordeiro tinha lido nos relatórios que o atual prefeito descendia de uma família de coroneis que estava no poder há gerações nessa cidade.
— Da última vez, só entenderam quando o pior aconteceu. Não sei quem vai ser o próximo… mas o aviso está dado. — Ferreira cuspiu no chão.
— É melhor tomar cuidado com a boca, Ramon. — O velho parou, observando os olhos atentos de Heitor. — Isso pode soar como uma ameaça e sabemos que não é isso que você quer dizer, não é mesmo?
O policial encarou os olhos azuis, estreitos e perspicazes antes de murmurar:
— Ele vai descobrir mais cedo ou mais tarde que não é em mim que deveria mirar suas desconfianças, de qualquer forma.
— E em quem eu deveria mirar, investigador? Se você sabe de alguma coisa, é melhor dizer antes que eu envie o meu relatório à capital.
— Você está me ameaçando? — Ferreira sorriu.
— Eu estou fazendo o meu trabalho. Sugiro que se apresse em fazer o seu também.
A desconfiança adicionou um tom hostil ao lugar e até os pássaros que cantavam no topo das árvores preferiram abandonar os poleiros em uma revoada sombria floresta adentro. O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo barulho dos pedregulhos que escorregavam e rolavam pelas rochas um pouco mais adiante.
Jorge empurrou Ramon e ficou entre os dois:
— Bem, chegamos na parte complicada. Então guardem essa conversa boba para depois e usem essa energia toda para subir o restante da trilha.
Foi um sábio conselho.
O caminho adiante era bem diferente daquele que haviam deixado para trás. A terra ganhava uma textura escorregadia e à medida que avançavam ficava mais solta e irregular. O som das pegadas abafadas por folhas secas e galhos quebradiços era tudo o que Heitor conseguia identificar e até os apontamentos entusiasmados do velho haviam cessado, deixando que o sussurro da mata comandasse o ritmo da caminhada.
O trio havia deixado para trás a última área oficialmente “segura” do parque. Não havia mais placas, corrimãos ou passagens demarcadas. Os últimos resquícios de que alguém realmente pudesse ter passado por ali se diluíram a cada passo em direção ao interior sinistro da floresta. A trilha que Jorge seguia era quase invisível para olhos destreinados, serpenteando entre árvores centenárias e barrancos escorregadios.
A luz do sol, até então constante, passou a ser filtrada por galhos espessos, como se a própria mata tentasse proteger seus segredos. O ar também ficou mais úmido, carregado por um cheiro de terra molhada, pedras antigas e algo mais difícil de decifrar.
Heitor sentia o coração pesar no peito, não pela caminhada em si, mas por algo mais denso. Uma opressão silenciosa que parecia atravessar as árvores. Dava a impressão de que os olhos da floresta estavam atentos a cada passo dos intrusos.
— Aqui era uma antiga rota de transporte do garimpo. — Jorge explicou, apontando para uma depressão no terreno que mal se distinguia do restante da trilha. — Escravos passavam com barris cheios de pedra, dia e noite. Dizem que os que morreram aqui tinham os pés amarrados antes de serem empilhados dentro de covas rasas.
Ramon chutou um torrão de terra que rolou alguns metros até bater numa raiz grossa e se partir ao meio.
— Assim, não estariam livres nem depois da morte — completou, num tom de quem fala sério demais para estar brincando.
Heitor se manteve calado, mas seu olhar varreu o entorno. Ele estava atento ao que era dito, e mais ainda, ao que estava sendo omitido. Era evidente que aquela trilha carregava memórias soterradas e que Jorge e Ramon sabiam muito mais do que estavam dispostos a admitir. Se quisesse resolver o caso, precisaria ganhar a confiança deles ao invés de atacar e por isso mudou a estratégia.
— Não tem muitos animais por aqui, né? — Perguntou de repente.
Jorge assentiu com a cabeça, parecendo satisfeito com a observação:
— O solo ainda está contaminado. Tem pontos em que o minério chega perto da superfície. Ainda há vestígios de mercúrio, cianeto… os antigos usavam de tudo para separar o ouro, sabe? Estamos vendo o final do ciclo.
— Entendi, mas se tem tanto mercúrio aqui não deveria ter um córrego ou riacho por perto? Não escuto barulho de água corrente já tem um tempo…
— Isso é porque agora estamos acima dela. — Jorge parou abruptamente, apontando para onde a trilha afunilava. — Bem-vindo à zona morta, inspetor.
— Zona morta? — Heitor estreitou os olhos.
— É como chamam essa parte da trilha. Nem insetos ficam por aqui. Dizem que é por causa da concentração de metais… mas quem cresceu por essas bandas sabe que tem… outra coisa que assusta até os bichos do mato.
Ferreira passou por eles, saltando algumas pedras sem dificuldade.
— Mas sabe como é, sempre tem alguém que quer dar um de corajoso… Tem uma história bem engraçada de um menino que subiu a trilha durante uma noite de lua cheia e desapareceu. Depois de três dias um morador o encontrou sujo e cheio de machucados vagando pelo parque. Ele disse que viu o diabo e que os olhos dele eram…
— Pare com isso, Ramon — Jorge repreendeu, visivelmente irritado.
— Não foi você que disse que ele devia saber onde estava pisando? — riu de forma cínica.
A partir dali, uma quietude desconfortável pairou sobre o grupo e Heitor não pôde deixar de pensar se o motivo era apenas a troca de farpas de antes ou se os outros dois também estavam sendo afetados pela atmosfera agourenta que descia das montanhas.
Encerrando as suposições, concentrou-se no som quase imperceptível que vinha escutando desde que saíram da sede do parque. No começo, achou que era imaginação, mas agora que o grupo estava em silêncio, tinha certeza. Havia um leve farfalhar, constante e ritmado, de algo pequeno que caminhava entre as folhas.
“Achei que animais não rondassem essa parte da trilha”, Cordeiro olhou de soslaio para trás. Por um segundo, pensou ter visto um vulto entre os arbustos, mas ao virar o rosto, não havia nada além das pedras coroadas por espinhos.
— Estamos quase chegando à clareira. — Jorge apontou adiante, a voz mais tensa. — É onde ficava a entrada principal da mina… antes do desabamento.
Heitor sentiu um fio gelado subir pela espinha. Um arrepio que não vinha do frio, mas da consciência de que estavam se aproximando de algo que não queria ser encontrado. No entanto, não teve muito tempo para organizar os pensamentos.
A trilha por onde seguiam se alargou de repente, revelando um antigo pátio de pedras amontoadas. Uma cruz de madeira carcomida, envolta por cipós e musgo, marcava o centro do que deveria ser um cemitério antigo e mal cuidado.
De início, a disposição dos pequenos montes de pedra soava aleatória, mas à medida que se aproximavam, dava para ver que os marcos foram empilhados seguindo uma ordem delicada e precisa.
O inspetor se abaixou, pegou um graveto e cutucou o líquen que cobria a superfície. Havia símbolos entalhados em cada um dos arranjos. Pequenos olhos, espirais e traços circulares cortados por linhas retas. Alguns tinham sido riscados. Parecia que alguém havia tentado apagar os desenhos à força, ao passo que outros foram tão escavados, que mal se via a sombra.
— Isso aqui é um cemitério? — Cordeiro perguntou, com a voz baixa.
Jorge não respondeu. Estava parado, olhando fixamente para o centro da clareira.
— Jorge? — Insistiu. — O que deu nele?
Ramon encolheu os ombros, como se não se importasse, mas o sorriso forçado não convenceu o inspetor.
— Enfim, tem alguma coisa escrita aqui. Você sabe o que significa?
— São só desenhos. Deixa isso pra lá. Ainda temos muito chão até a mina.
Estava claro pela atitude dos dois que este era um local importante e Heitor precisava descobrir se isso tinha relação ou não com o caso.
— Bem, se são só desenhos não vai ter problema se eu pegar um desses e…
— Não! — Ferreira cortou. — São desenhos muito, muito antigos, inspetor. Você não veio aqui para vandalizar o lugar, não é mesmo?
Cordeiro quis retrucar, mas o gravador que ainda estava ligado dentro do bolso interno do paletó chiou alto. Ramon não ouviu ou simplesmente decidiu ignorar o barulho, se afastando em direção ao guia que continuava observando o madeiro.
— I-isso… não está certo… n-não pode ser… de novo não…
A voz trêmula de Jorge agitou os instintos de Heitor. Dava para sentir o pavor que emanava daquele par de olhos arregalados que não conseguiam se desgrudar da cruz.
“Mais que merda tá acontecendo aqui?”, suspirou, puxando o aparelho e conferindo o visor. A gravação estava ativa, mas o nível de interferência era bem alto. Mesmo com todos em silêncio, a forma de onda apresentada na tela tremia de forma errática e o ícone de alerta piscava no canto superior.
“Dá onde está vindo isso?”, se levantou e o aparelho guinchou uma vez mais. O inspetor olhou para frente e, de súbito, percebeu que havia encontrado. Não precisava que o gravador confirmasse, a intuição já o tinha feito.
Ele caminhou até o centro do lajeiro, arrastando o olhar afiado de Ramon e a descrença crescente de Jorge a cada passo.
Heitor não acreditava em solo sagrado ou coisas do tipo, mas também não era de seu feitio desrespeitar a história daqueles que já foram. Por isso, redobrou o cuidado ao passar pelos pequenos montes de pedra que circulavam o madeiro em espiral.
Mesmo de costas, podia sentir a hesitação que pairava acima do guia. No entanto, por algum motivo, nenhum dos homens o impediu de se aproximar do objeto que brilhava dependurado sobre a cruz.
— Eu já vi isso antes — murmurou, e um calafrio ominoso subiu pelas costas.
Os instintos gritavam para que não perturbasse aquilo, fosse o que fosse, mas o dever e uma curiosidade estranha impeliram os nervos, que de forma obediente, cederam ao desejo de tocar no perigo.
A madeira, já enegrecida pela umidade e o sol, era áspera e quebradiça. Cheia de fissuras profundas que exalavam um cheiro suave de decomposição. Contudo, os símbolos talhados na superfície, estavam claros e limpos, dando a impressão que haviam sido gravados há poucas horas.
Com mãos cuidadosas, Heitor fotografou o objeto. Depois, calçou as luvas que tirou do bolso e se abaixou, descrevendo tudo o que via.
Estava tão focado que não notou os avisos e alertas que serpenteavam como eletricidade pelos ossos. Tudo era estranho e ao mesmo tempo que poderia ser uma grande perda de tempo também tinha uma boa chance de ser a pista que o levaria de volta à capital.
O inspetor desenrolou a corrente prateada, a levantou um pouco acima da cabeça e observou o pingente que tilintava de forma delicada. Ele era antigo. Talvez mais velho do que todo aquele arranjo de pedras ou a cruz em que foi pendurado e por isso hesitou quando viu a pequena dobradiça em sua lateral.
“Abra.”
O coração errou uma batida. Virou a cabeça e olhou ao redor. Não havia ninguém. Até os homens que observavam com tanto nervosismo tinham desaparecido na escuridão.
“Abra.”
A voz feminina reverberou pelos músculos, nervos e ossos. Era impossível, mas podia jurar que o chamado vinha de dentro daquele relicário.
— Porra… — Lutou contra a loucura que sussurrava ao pé do ouvido. — Mas que inferno tá acontecendo aqui?!
“Abra. Agora.”
— Que se foda!
Um clique sutil e todos os sons do mundo foram silenciados. O inspetor sabia que era o último aviso. A partir dali, não teria volta, mesmo assim, prosseguiu. Através do vidro trincado nas bordas do relicário, o reflexo desfocado de Heitor o saudou com um sorriso.