O Sétimo Espelho - Capítulo 11
Sete Segundos no Escuro
— Você ouviu isso? — Uma voz desconhecida soou tão perto que assustou o inspetor. — Será que tem mais alguém aqui?
Heitor esfregou os olhos. Não conseguia ver com clareza, sentia que estava enxergando através do reflexo fosco de um espelho de aço escovado. As formas e cores distorcidas se misturavam em um brilho acinzentado que ia escurecendo perto das bordas, transformando a paisagem ao redor em um grande borrão sem contorno. Ainda assim, tinha certeza de que não estava mais no lajedo de pedras ou na companhia de Jorge e Ramon.
— Eu juro que ouvi alguém me chamar lá de dentro… — O timbre feminino tremeu de leve.
A silhueta surgiu da penumbra como um fantasma recortado pela névoa, cada passo tilintando com um barulho sutil do metal que brilhava pendurado em seu pescoço.
Cordeiro puxou o ar com força e contou até sete antes de soltá-lo. O rosto dela continuava embaçado, talvez a realidade se recusasse a dar nitidez àquele momento. Mas ele já tinha uma boa ideia de quem era. Ou, pelo menos, quem deveria ser.
A garota continuou andando, conversando com Heitor. O inspetor sabia, no entanto, que não era com ele que a garota falava de forma amigável e que ela nem mesmo o via. Na verdade, se fosse dar um chute, diria que a jovem estava acompanhada do próprio assassino, que só não havia se revelado ainda.
De qualquer forma, não tinha nada que pudesse fazer a não ser assistir com atenção às memórias até onde elas o permitissem.
Afinal, essa era sua bênção e maldição.
“Pra onde ela foi?”, Cordeiro sussurrou para si.
A silhueta borrada havia desaparecido ao passo que uma sensação pegajosa escorria pela mão do inspetor. Ele tateou o chão e percebeu que estava sentado sobre uma poça vermelha escura e um calafrio ominoso arrepiou os pelos da nuca. Ainda não conseguia enxergar direito, mas era impossível não reconhecer o cheiro forte e metálico que impregnava o lugar.
“Então ela já…”, um arrepio incômodo serpenteou das pontas dos dedos até a coluna. “Mais que porra é essa?”.
Um sentimento estranho nublou sua mente. Teve a impressão de que uma corrente elétrica havia atravessado todos os músculos e o sangue borbulhava em agitação. O coração batia acelerado e podia sentir o suor escorrendo pela testa enquanto arfava com dificuldade.
O corpo todo tremia em espasmos involuntários. Entretanto, o que sentia não era medo ou dor, mas sim êxtase.
“Filho da puta!”. Heitor cerrou os dentes, mas não foram estas as palavras que escaparam daquela boca.
— São lindos, lindos… Pena que ainda não são os certos… — A voz entrecortada pelo prazer carregava uma ternura doentia. — Não se preocupe. Eu vou cuidar bem deles mesmo assim.
As luzes fracas e difusas revelaram símbolos no chão à medida que o homem se movia com certa dificuldade. Um círculo de padrões desconexos, desenhado com algo mais escuro que tinta, apareceram no campo de visão do inspetor, evocando memórias dolorosas de um pesadelo que ainda não tinha sido esquecido.
“L-Laura?!”, o inspetor gritou em silêncio, se contorcendo dentro do corpo que não o obedecia. “Saia de perto dela agora! Eu vou te matar, seu desgraçado!”.
No entanto, as ameaças não surtiram efeito e por mais que se debatesse, não podia controlar as mãos hábeis que acariciavam o rosto desfigurado na sua frente.
— Não precisa chorar. — Secou as lágrimas que rolavam misturadas ao sangue. — Você se saiu muito bem, minha pequena flor.
Apesar de ter o mesmo sorriso rasgado na face, aquela boneca de carne não era Laura e um alívio doloroso embrulhou o estômago de Heitor.
— Ele vai ficar satisfeito. Agora falta pouco, aguente só mais um tiquinho.
Os olhos da jovem vibraram em desespero dentro das órbitas expostas. Ela sabia o que ia acontecer, mas já não tinha forças para lutar.
— Não se mexa, ou vai doer ainda mais.
Cordeiro fechou os olhos, mesmo assim pôde ver e sentir. O instante em que seus dedos, controlados por algo além de sua vontade, apertaram uma daquelas esferas úmidas e frágeis. O grito abafado da garota era uma mistura de súplica e agonia que borbulhava junto do sangue e escorria através da garganta dilacerada, mas o homem não recuou.
“Não! Seu desgraçado”, Heitor clamou, impotente. “Solta… ela!”. Suas lágrimas se misturaram com o som viscoso de algo se rompendo no escuro.
— Não! Para agora!
— Heitor? Com quem está falando? — Jorge o observava, preocupado.
O inspetor cambaleou para trás, soltando o pingente. O coração estava disparado. Não havia mais gritos nem sangue. Apenas aquela sensação nauseante de que o mundo, por um instante, se dobrou ao redor dele.
— Tá tudo bem? — Ramon se abaixou ao seu lado.
— Foi só… tontura. — Heitor assentiu, espremendo as palavras pelo nó que apertava a garganta.
Ele esfregou os olhos. Não estava nada bem. Na verdade, estava assustado.
Não era a primeira vez que algo assim acontecia. Para ser honesto, aquilo que chamava de “sensação” era exatamente isso. Uma impressão repentina, um cheiro que não estava mais ali, ou o sussurro de alguém desaparecido em uma cena de crime, coisas que ninguém mais notava, mas que o levaram a encontrar corpos, prever comportamentos e até mesmo evitar a morte.
Mas não passavam disso, vislumbres efêmeros que duravam menos de um segundo. Mas aquilo… aquilo foi diferente. Foi a primeira vez em muitos anos que vivia o outro lado com tanta clareza, como se seus olhos tivessem se fundido aos do próprio assassino. E isso o apavorou.
Ele não estava apenas presenciando o mal, toda a euforia sádica que sentiu antes havia se entranhado em suas veias e agora fazia parte dele.
“Isso foi perigoso”, Cordeiro engoliu seco. Esses efeitos colaterais eram um dos motivos pelo qual aprendeu a fingir que os sussurros que o assombravam eram só ecos do subconsciente e as visões borradas e escuras, apenas fruto de sua imaginação fértil. Afinal, o que não existe não pode te controlar.
— Porra… — Heitor varreu os cabelos que estavam grudados na testa. — Isso aqui é coisa de vocês?
Ergueu o colar. O pingente tremia entre seus dedos.
— Do que está falando, meu jovem? — O guia se aproximou, ainda receoso. — Jamais iríamos profanar um lugar como…
— Corta essa. — Avançou contra o velho. — Eu vi você encarando aquela cruz quando chegamos. Se não queria que eu percebesse deveria ter disfarçado melhor.
Jorge empalideceu, os olhos cheios de pavor e mágoa.
— Calma aí, inspetor. Você está um pouco alterado. — Ferreira interveio, se colocando entre os dois. — Ele está falando a verdade.
— Como pode ter tanta certeza, policial? Ou foi você quem mexeu na cena? Está tentando impedir a reabertura do parque? Ou só sente tesão em torturar e matar garotinhas?
— Pelo amor de Deus, inspetor… — a voz do guia saiu fina, trêmula — Ramon nunca faria uma coisa dessas.
Ferreira manteve o silêncio. O olhar preso no colar. Aquela peça parecia guardar algo que o fez revisitar memórias complicadas.
— Você tem ideia da acusação que está fazendo? — Jorge retomou, ofegante. — Porque diabos você acha que nós te trouxemos aqui? Eu tenho família nessa vila. História. Já vi muitos amigos morrerem nesse lugar. Eu só quero que isso tudo acabe de uma vez por todas.
Heitor deu um passo para trás. A adrenalina ainda queimava em seus músculos como veneno, mas a mente estava começando a clarear.
— Vocês podem até não ter matado a garota, mas com certeza sabem mais do que estão dizendo. — Disparou, encarando os dois.
Os galhos rangiam alto, agitados pelo vento frio que espalhava flores brancas pelo ar. E por mais que não estivessem em uma altitude tão elevada, aquela atmosfera perniciosa tornava difícil a tarefa de se mover ou respirar.
— Não fomos nós que colocamos isso aí, Heitor. — Ramon falou em tom grave. — Mas também não é a primeira vez que vimos algo do tipo acontecer.
O inspetor virou-se lentamente em sua direção.
— É melhor você começar a falar antes que eu perca o resto da paciência.
Ferreira coçou a nuca. Seus olhos vagavam, pesados, como se examinassem uma lembrança remota demais para ser dita com facilidade.
— Não aqui — disse, finalmente — se quer entender a verdade, vai ter que entrar.
— Entrar onde? — Heitor cerrou o maxilar.
Ramon apontou com a cabeça para a trilha à frente, onde os arbustos rareavam e os trilhos antigos reapareciam como ossos semi-enterrados.
— Na mina — respondeu com um suspiro arrastado.
Cordeiro estalou a língua, depois de esfregar o rosto.
— Isso não é a porra de uma história de fantasmas, policial. Tem gente morrendo de verdade aqui.
— Eu sei. — Ramon assentiu. — E vai continuar morrendo se você não prestar atenção nas coisas certas. Acha mesmo que isso começou agora?
O inspetor permaneceu em silêncio. Ele queria gritar, arrastar os dois dali algemados e prendê-los até que confessassem alguma coisa. Ao mesmo tempo que sentia que estavam dizendo a verdade e que se os seguisse encontraria uma resposta para todas essas dúvidas que ressurgiram dentro de si.
— Se quer que eu vá com você, não deveria começar a abrir o bico de uma vez? — Insistiu.
— Acredite em mim, Heitor. Não estou tentando fugir, mas aqui não é seguro. Sei que consegue sentir isso também.
De fato, todos os instintos do inspetor gritavam para que ele saísse o mais rápido possível dali. Não conseguia dizer exatamente o que era, mas sabia que havia algo de perverso espreitando nas sombras, pronto para devorá-los assim que baixassem a guarda.
— É melhor manter sua palavra, investigador — rosnou.
Ramon confirmou, tomando a liderança. Cordeiro o seguia de perto, mas Jorge se afastou do grupo. Talvez quisesse cuidar da retaguarda, ou estivesse ressentido com as acusações do inspetor. Não importava, no entanto. Seu destino estava a apenas alguns passos de distância.
A entrada da mina do Anhangaba fazia jus ao nome e era, de longe, o ponto mais sombrio de todo o circuito. Onde antes havia um arco de pedra rudimentar sustentando a boca da galeria, agora se abria um imenso rasgo desmatado na encosta, ladeado por entulhos, raízes expostas e blocos rachados.
— Houve um deslizamento há algum tempo e por isso o caminho ficou ainda pior. Na época dos escravos, o trilho dos carrinhos chegava até aqui. — Jorge apareceu atrás de Heitor, apontando para a ferragem ainda visível sob os escombros.
— Mas é seguro entrar?
— Ela não vai desabar, se é isso que quer saber… — O guia passou por ele e um arrepio gelado incomodou a nuca de Heitor. — Vamos logo.
— Mais que merda! — murmurou, esfregando o pescoço.
Nenhum som de vida, nenhum sussurro do vento, só o eco opaco do vazio. A vegetação densa que os observou ao longo da trilha se dissolveu em um punhado de mato seco. Ao que tudo indicava, até as plantas temiam ultrapassar aquele limiar.
Heitor replicou os passos do guia por entre as pedras soltas até Ramon, que esperava com uma expressão complicada na frente do túnel.
— Não importa no que você acredita, inspetor — Ferreira disse em um tom quase solene — mas mantenha isso em mente: Esse caminho foi construído com o sangue e o suor de muitas pessoas inocentes, e isso deixou marcas profundas na terra. Temos que ter respeito ao caminhar aqui.
Heitor assentiu com a cabeça.
Ramon fechou os olhos, permanecendo em silêncio por alguns segundos. Parecia pedir autorização para avançar.
Por mais que não reconhecesse o poder de orações ou coisa que o valha, Heitor entendia o respeito e o temor que o lugar evocava aos nativos. Havia algo ali, um peso invisível, uma sensação latente de morte incrustada nas pedras e no solo. Como se a própria terra lembrasse e lamentasse o que um dia foi arrancado de suas entranhas.
Ferreira murmurou alguma coisa enquanto pescava um sino dentro do bolso. Ainda estava com os olhos fechados quando balançou o objeto de ouro na direção de Heitor.
— Não importa o que você ouvir lá dentro, inspetor, nunca, jamais responda. Entendeu?
— Do que você está…
— Se não consegue lidar com isso é melhor dizer agora.
— Talvez seja você quem precise aprender a lidar “com isso” — Cordeiro respondeu de forma ríspida, puxando o artefato das mãos do homem.
Ramon o encarou. Heitor podia sentir a ameaça vinda por detrás daquelas íris animalescas, mas havia algo além disso. Uma espécie de receio ou culpa na expressão do policial e foi isso o que o deixou nervoso de fato.
— Ótimo — suspirou. — Caso se perca, toque o sino duas vezes e espere no lugar, eu vou te encontrar.
— Mais alguma coisa? — Cordeiro disse irritado.
— Sim… Não se perca.
Ele não estava brincando, mas Heitor não podia se importar menos. Jorge percebeu o cinismo no rosto do inspetor e se apressou antes que o outro tivesse tempo de continuar com a discussão.
— Aqui, pegue isso.
O velho estendeu uma das lanternas antigas que tinha pendurada no cinto.
— Obrigado e quanto a ele? — Apontou com a cabeça para o homem que seguia sem olhar para trás.
Jorge deu um sorriso amarelo:
— Acredite. Ele não precisa de uma.
Heitor ergueu uma das sobrancelhas, porém, uma sensação incômoda o fez desistir. O bafo úmido e mineral que balançava seus cabelos de forma ritmada não vinha de fora, mas sim do interior da caverna. Parecia que estava prestes a entrar, por vontade própria, dentro da boca de uma criatura adormecida.
— Lembre-se do que ele falou, garoto. Mesmo que seja a voz do Ramon, a minha ou de alguém que você ama. Nunca, jamais responda. Tudo bem?
— Eu entendi.
— Certo. — O guia pigarreou, fazendo o sinal da cruz. — Que Deus nos livre do mal. Amém.