O Sétimo Espelho - Capítulo 12
A descida
O cheiro da terra úmida ficava mais intenso à medida que a luz do dia era deixada para trás, aumentando a sensação claustrofóbica que se arrastava pelo teto baixo.
Ramon assumiu a dianteira do grupo a passos lentos e firmes. Ficou claro que conhecia muito bem o caminho estreito que serpenteava para dentro da montanha e isso não era uma surpresa, afinal. No entanto, tinha algo de familiar naquela postura resignada.
Heitor não conseguia ver seu rosto, mas a silhueta iluminada pelas lanternas seguia uma linha imaginária que o afastava das paredes. Não havia curiosidade, nem medo. Apenas uma aceitação fria, meio entorpecida, como se cada marca escavada ali fosse íntima demais para ser exposta.
Jorge vinha logo atrás, com a cabeça baixa e os ombros curvados, murmurando o que o inspetor imaginou serem orações ou súplicas.
“Em que tipo de merda esses dois se meteram?”, pensou, conferindo o sinal do celular. “Se ao menos aquele filho da puta tivesse visto minhas mensagens”. Estalou a língua. Mal tinha entrado na mina e já estava arrependido da decisão. Além da desconfiança, havia aquela impressão distinta de que algo o acompanhava pelas sombras.
O silêncio também o incomodava. Não era opressivo como na trilha, na verdade, quase podia ouvir um certo cochichar todas as vezes que a brisa soprava o ar para fora da caverna. Imaginou que o som vinha das tábuas de madeira, velhas e apodrecidas, que rangiam sob os passos do grupo, mesmo assim, parecia estranho.
Heitor balançou a cabeça, afastando a sensação ruim. Pensar naquilo não lhe traria nada de bom e ele tinha coisas mais importantes com o que se preocupar no momento. Os símbolos talhados no rodapé das paredes eram uma delas. No início achou que fossem apenas as marcas deixadas por picaretas e dolabras antigas, mas logo percebeu que havia algum tipo de padrão ali.
— Deixe a lanterna baixa, garoto. — Jorge sussurrou, balançando o pulso. — Não queremos arrumar confusão.
“Confusão?”, pensou, ainda preso nos entalhes que haviam parado de progredir na parede e agora surgiam a cada poucos passos sempre na mesma altura. “Não parece uma medida de comprimento, será que é…”. O som agudo chamou sua atenção e por pouco, conseguiu se desviar do vulto preto que se atirou contra ele.
— Mais que inferno! — Heitor cerrou o maxilar, apoiando as mãos no trilho que era usado para levar carrinhos cheios de ouro e pedra para fora da mina.
— O que houve? — O guia perguntou sem virar para trás.
— Acho que foi a porra de um morcego… Sei lá.
O inspetor flexionou os dedos na frente da luz. Estavam lá e em perfeito estado, mas a sensação estranha que rastejou sob eles era tão incômoda quanto aquela de quando atravessou o espelho em seus sonhos.
Ramon virou para trás, o pegando desprevenido. O rosto encoberto não revelava muito, mas Heitor pensou ter ouvido um rosnado baixo escapar pela garganta do policial antes de retomar a trilha.
“Ah… vai se fuder”.
Conforme seguiam pelo declive, um vento úmido reverberava entre as rochas e depois de mais alguns minutos, a passagem estreita se transformou em uma galeria alta e bifurcada.
“Foi daqui que ele veio”, o inspetor baixou automaticamente a lanterna ao notar os inúmeros olhos o fitando de cima. Seria perigoso se todas aquelas coisas começassem a voar ali dentro, apesar de que, algo lhe dizia que esse não era bem o problema.
Talvez fosse sua impressão, mas a sombra formada por aquelas centenas de pares de asas se movia em um ritmo sutil, quase respiratória abaixo do teto, acompanhado de um som infantil que ressoava escondido entre os chiados. Heitor ergueu a mão instintivamente até o coldre, sem puxar a arma, apenas para sentir o peso dela. As várias pupilas negras não piscavam e, justamente por isso, eram mais humanas do que deveriam ser.
— Os túneis se dividem com frequência a partir daqui e nem todos têm saída. Se distrair pode custar caro. — A voz de Jorge atravessou seus pensamentos.
— Certo…
— Você deve ir pela esquerda nas duas próximas bifurcações e pela direita na terceira. Nunca o contrário, entendeu? — O velho continuou em um tom baixo e sério.
— Duas à esquerda e não três? — Heitor questionou.
O guia virou para trás, mas se arrependeu ao encontrar o par de olhos frios que observavam com desconfiança. Pigarreou e se endireitou na trilha:
— I-isso. É época de cheia, alguns túneis acabam alagando e não dá para passar.
— Entendi. A perícia fez esse caminho também?
Ele coçou a cabeça meio sem jeito. Estava pensando nas palavras certas para responder quando Ramon interveio:
— Não dá para saber. As placas de identificação e um punhado de fita zebrada estavam boiando no rio. Mas nós não precisamos delas, de qualquer forma…
— Elas simplesmente apareceram boiando no rio, é? — Heitor provocou.
— Nada que vem de fora deve ficar aqui por muito tempo, inspetor, ou é esse o fim que acabam tendo — riu, seus olhos com um brilho próprio.
— Estou incluso nisso?
Ferreira deu de ombros, saltando o pequeno córrego que atravessava a galeria. Apesar das palavras duras, havia retomado o tom despreocupado de antes:
— Todos estamos.
“Eu sabia. Eles querem fazer com que qualquer coisa que aconteça aqui pareça um acidente”, pensou.
Heitor encarou o filete de água. A superfície refletia as imagens como um espelho trêmulo, distorcendo suas formas. Ele estava seguindo por um caminho perigoso onde, literalmente, um passo em falso significaria o fim e essa parecia a última chance de voltar.
“Foda-se”. Se aproximou da beira do córrego subterrâneo e respirou fundo antes de saltar para a outra margem. Deve ter feito alguma expressão estranha enquanto pensava e Ramon não perdeu a oportunidade:
— É só água, inspetor. Bem gelada, por sinal — disse, já à frente, com aquele meio sorriso que soava sempre como uma provocação. — Você não está com medo, né?
Ele estreitou os olhos, mas não respondeu. Jorge hesitou um instante antes de saltar e quase caiu quando algumas pedras redondas escorregaram por debaixo de seus pés. Os seixos rolaram pela margem, produzindo estalos agudos que ecoavam pelo túnel como se muitas crianças tivessem rido ao mesmo tempo.
O inspetor gelou. Aquilo não era o som do eco das pedras. Era nítido demais, quase como uma roda de crianças brincando em volta de uma fogueira invisível. Ora distante, ora rente ao ouvido, como se dezenas de vozes zombassem deles de dentro da rocha. O guia tentou disfarçar, mas sua mão tremeu ao apoiar-se no joelho.
— Vocês ouviram isso? — perguntou, virando-se para o escuro além do rio.
— Parece que você fica impressionado com pouca coisa. — Ramon seguiu adiante como se nada tivesse acontecido.
Heitor ainda estava com a mão estendida, mas o guia recusou a ajuda, balançando a cabeça de forma compulsiva.
— Eu só… escorreguei. Não foi nada. — Deu alguns passos vacilantes enquanto esfregava o pescoço. — Vamos indo, garoto.
Cordeiro encarou uma última vez o breu antes de seguir, mas a sensação de ser observado não o abandonou.
A cada bifurcação, o ar parecia mais denso. A lanterna piscava de vez em quando e ele tinha a impressão de que as sombras se mexiam dentro daquele segundo de falha, voltando a ficar imóveis sob a luz. Como se isso não bastasse, os sons dos passos ficaram mais nítidos: curtos, leves, correndo atrás deles.
Era como se estivesse sendo provocado. Cada vez que girava o corpo para trás, erguendo a lanterna, via apenas o brilho dourado que salpicava as paredes e chão. Nada mais, além de pedras e um silêncio vago. Assim que virava para frente, os risos abafados retornavam mais próximos, rente aos seus ouvidos.
O coração batia rápido e o suor grudava a blusa social nas costas, mas os outros dois pareciam alheios a esse jogo de esconde-esconde macabro. Talvez estivesse alucinado, não seria uma novidade, pensou. Contudo, os instintos afirmavam o contrário.
“É ele não, é?”, os sussurros ficaram mais altos. “Sim, meu novo bachir”. “Ele é nosso”. “Não! Ele é do mestre”. “Sim, só dele”.
Vozes como as de uma criança oscilavam entre espanto, euforia e medo. O timbre daquilo que se passava por uma garotinha perguntava e respondia a si mesmo.
Heitor ignorou da melhor maneira que pode, se empenhando em colocar um pé na frente do outro para acompanhar as figuras borradas de Jorge e Ramon. Tudo parecia girar diante dele, mas sabia que se parasse agora, não sairia vivo dali.
— Chegamos. — Havia certa reverência no tom usado pelo guia.
O inspetor conseguia ver pouco mais do que uma silhueta contornada pela luz laranja e um par de olhos brilhantes, mas isso foi o suficiente para o trazer de volta à realidade. Ainda não confiava cem por cento nos dois e alguns murmúrios abafados sopravam para além da ilusão, mas agora que tinha chegado ali, faria o seu trabalho.
— O corpo foi encontrado sobre aquela rocha. — Ramon apontou para o lajedo talhado no centro do salão.
A câmara natural tinha paredes escuras e um teto em forma de abóbada, por onde estalactites cresciam seguindo o fluxo da água da chuva. O lugar exalava um odor metálico, misto de ferro e enxofre, que lembrava sangue seco e de acordo com as fotos da perícia, deveria ter uma espécie de padrão circular contornando a mesa de pedra, mas Heitor não tinha como confirmar no momento.
“Porra”, esfregou os olhos que ainda estavam um pouco desfocados.
— Não chegue muito perto. — Jorge advertiu enquanto o inspetor se aproximava da base do arranjo. — Pode ser perigoso.
Ele sabia disso e mesmo que provavelmente fosse por uma razão diferente da do guia, enfiou as mãos dentro dos bolsos e redobrou a atenção para não encostar em nada. O local parecia um pouco diferente daquele que viu quando tocou o relicário, mas com certeza era o mesmo que a perícia visitou.
— Então ele a matou e depois trouxe prá cá? — murmurou para si, apertando os olhos. — Não faz sentido…
— No que está pensando? — Ramon levantou uma sobrancelha, mas foi ignorado. — Ei! Eu tô falando com você, inspetor.
— Isso aqui… — Apontou para a fenda responsável por escoar as partes líquidas no canto do lajeiro. — Não é só um altar, é uma pedra de sacrifício, não é?
Jorge empalideceu.
— C-como eu disse… a fé dos Couras não é assim… — O guia tentou contornar, embora a voz tremida não ajudasse muito.
— Interessante. — Heitor sorriu, caminhando até o velho que se encolhia no canto do saguão. — Tanto no relatório, quanto nos registros que me mostrou. Ficou bem claro que esse grupo não existia mais.
— É… então, é que…
Ferreira interrompeu:
— Alguns ainda vivem aqui, mas posso garantir que não foi nenhum deles.
— Ah é? Como?
Cordeiro estava prestando atenção no semblante do policial, buscando decifrar o que se passava além daquela fachada desinteressada quando percebeu o movimento evasivo de Jorge.
— Ramon! — O velho tentou se esquivar, mas Heitor entrou no caminho.
— Ele vai descobrir de qualquer forma — Ferreira balançou a cabeça, dispensando as súplicas. — O ataque aconteceu sob a lua cheia, inspetor. Durante esses três dias não é permitido subir a montanha.
— Você não pode! — O guia investiu novamente, mas foi segurado pela blusa.
Ele estremeceu, olhando para o policial como se tivesse sido pego em flagrante. Tentou se soltar, mas o aperto não cedeu.
— Onde você se machucou assim? — Heitor franziu a testa, observando a queimadura vermelha que pulsava abaixo da gola da camisa.
— Nós não deveríamos… nunca deveríamos… — A expressão de Jorge se contorce em dor.
Cordeiro afrouxou os dedos, mas era tarde, havia sangue em suas mãos. Um arrepio estranho subiu pelos músculos do braço, mas antes que pudesse se desculpar ouviu uma voz suave e infantil, tão próxima que pareceu tocar-lhe o ouvido:
— Heitor…
A atmosfera ficou mais carregada do que a de qualquer outro salão ou túnel por onde passaram e o ar pareceu se mover sozinho, como se alguém ou alguma coisa respirasse abaixo deles. Cordeiro deu um passo para trás, se apoiando na parede.
— Laura… — a voz embargada soou como um gemido — Mas… como?
— Não responda, inspetor! — Os gritos de Ramon nunca alcançaram o destino.