O Sétimo Espelho - Capítulo 13
O chamado
As gargalhadas de crianças se misturavam ao som do próprio sangue pulsando nos ouvidos e uma vertigem seca terminou de nublar a visão de Heitor. O chão parecia ceder, as rochas respiravam ao seu redor. Cada batida do coração era como um tambor ecoando dentro do crânio.
A imagem do rosto delicado da irmã, manchada de sangue e aquela sensação grotesca que invadiu seu corpo quando tocou o relicário o preencheram novamente, fazendo com que caísse de joelhos.
— De novo não… — Agora era o velho quem balbuciava contra o vento. — Não…
— Jorge! — Ramon segurou-o pelos ombros. — Não responde, ouviu? Não responde, inspetor! Vocês entenderam?
Todos ouviram o chamado, mesmo que tenha sido de formas diferentes. Para Jorge, era como o grito de uma criança faminta atrás de uma porta trancada, implorando por socorro. Já para Ramon, o comando seco de uma mulher invisível, ressoando como ordem inquestionável.
Heitor não sabia disso, no entanto. Também não conseguia ver as silhuetas agachadas no canto do salão. O mundo estava girando e se dobrando ao seu redor, desejando engoli-lo de uma única vez. Era como se a própria caverna tivesse uma boca, e ele estivesse deslizando direto para dentro dela.
O eco das risadas estourava contra as paredes, acompanhadas de soluços, choro e súplicas que reverberaram por todos os lados. Memórias dolorosas que foram trancadas no fundo do peito ressurgiram em lampejos atrás dos olhos: O enterro do pai, a irmã estendendo a mão manchada de sangue, a sirene distante do acidente. O presente e o passado se revezavam para repuxar a linha tênue da sanidade.
— Heitor! — Ferreira berrou desesperado.
— Eu sinto muito… — Jorge continuava suplicando aos prantos. — Não devíamos ter trazido a luz… eu errei de novo…
— Isso não vai dar certo! — O policial levantou, colocando o guia sobre as costas. — Aguenta firme. Todo mundo vai sair daqui desta vez.
A intenção era alcançar o inspetor em seguida, mas um tremor agitou a galeria e por pouco não o derrubou, levando o guia junto. Grãos de terra deslizaram do teto e uma cortina empoeirada coloriu a câmara de amarelo ocre. A lanterna de Jorge piscava, rolando pelo chão enquanto um outro foco de luz se afastava pelo túnel.
“Ele nos ouviu”. As risadas ficaram animadas. “Sim, ele nos respondeu”.
— Não… isso não é ela… — Cordeiro balançou a cabeça. As memórias estavam confusas, reviradas entre a realidade e os momentos de alucinação.
— Inspetor! — Ramon estendeu a mão, mas a caverna estremeceu de novo.
A lanterna do guia girou no chão, apontando para o rosto vazio de Heitor. Um grito agudo e aterrador ecoou pelas paredes atrás dele, seguido por um barulho semelhante ao de uma centena de pequenos pés correndo para dentro da escuridão.
O som era desigual, às vezes rápido como uma manada, às vezes compassado como uma marcha fúnebre. Heitor fechou os olhos por um instante, tentando convencer a si mesmo de que não havia nada ali. Mas cada batida contra o chão trazia o cheiro de terra molhada, como se aquelas crianças invisíveis arrastassem consigo a lama dos próprios túmulos.
— O que tá acontecendo? — Cordeiro se virou confuso, na direção da luz.
Ele viu o policial, carregando Jorge nas costas. Não havia cor em seu rosto e os olhos brilhantes estavam arregalados em profundo espanto. O que quer que tivesse visto atrás de Heitor, era algo que não deveria ser testemunhado por ninguém.
O inspetor engoliu seco. Um calafrio subiu pela nuca.
As lanternas piscaram outra vez. O ar gelou e a pressão no salão aumentou como se uma massa invisível ocupasse cada fresta do espaço, se escondendo no teto ou entre as brechas mal iluminadas das paredes.
— Inspetor… — O tom do policial era urgente. — Quando eu mandar, corra o mais rápido que puder, entendeu?
Ele concordou. O coração estava acelerado e um gosto amargo subiu pela garganta enquanto acompanhava o brilho das lâmpadas se dissolverem até não sobrar mais que duas centelhas alaranjadas. Ao mesmo tempo, as risadas infantis se transformaram em gargalhadas altas e depois em um som mais maníaco e incontrolável.
A lanterna de Heitor foi a primeira a se apagar, mergulhando o companheiro na escuridão. Ainda conseguia ver, dois olhos amarelos e incandescentes brilharem diante dele. Era Ramon, não tinha dúvidas. No entanto, uma centena de outros pares se acenderam atrás do policial assim que a luz se foi. Olhos famintos, vermelhos, apenas aguardando o momento certo para atacar.
— Corre! — a voz de Ramon rasgou a caverna. — Não olha pra trás!
Um rosnado abafado ecoou das profundezas enquanto alguma coisa pesada rastejava pelos túneis. O chão tremeu sob os pés de Cordeiro e ele disparou de volta pelo caminho que tinham feito, sendo seguido de perto pelo coro infantil.
A adrenalina moveu o corpo do inspetor pelos túneis, ao passo que a mente, ainda meio entorpecida, tentava traçar o caminho correto através do labirinto de pedras. A lanterna apagada ainda balançava em sua mão e antes de morrer, piscou uma última vez, revelando uma curva adiante.
E ali, escondida no breu, uma voz conhecida sussurrou:
— Vem… Vem até aqui…
A doçura era uma armadilha. Heitor percebeu isso antes mesmo de sentir o cheiro podre. No entanto, a voz carregava algo íntimo, quase familiar, como se tivesse sido arrancada de uma lembrança de infância. Era a mesma cadência que sua irmã usava para chamá-lo na varanda de casa, embora estivesse um pouco distorcida agora.
A criatura estava usando suas memórias mais preciosas para dominá-lo. Pior do que isso, às estava contaminando com aquele hálito pestilento sem nenhum pudor. Heitor deu um passo à frente, já não se importava com o que iria acontecer, desde que colocasse um fim naquele teatro infernal.
O fedor encheu suas narinas e queimou a garganta. O bafo quente rastejava pelas bochechas e uma baba viscosa pingou em seu ombro quando aquilo se aproximou. Ele fechou os olhos, os dedos deslizavam pelo coldre, mas um timbre firme e impossível de ignorar surgiu bem no fundo de sua mente:
— Use o que está no bolso.
“O quê?”, o inspetor prendeu a respiração. Dentro daquele pesadelo, essa com certeza, era a voz que menos esperava ouvir. Feminina, autoritária, tão real que seu corpo inteiro reagiu, recobrando o controle.
Sem abrir os olhos, moveu a mão até o paletó. O objeto de metal que Ramon lhe deu ainda estava lá, mas não sozinho. Quando o puxou, uma pequena flor escorregou junto. Era a mesma que tinha enfiado no bolso de qualquer jeito, horas antes de subir a trilha. As pétalas brancas cintilaram no escuro enquanto rodopiavam espalhando um perfume suave que contrastava brutalmente com o odor da criatura.
Aquilo recuou alguns passos.
— Você… — disse a voz infantil, agora distorcida pela raiva.
Heitor ergueu o sino. O toque metálico vibrou pelo túnel.
— Como ousa? — rosnou, mais grave e monstruosa.
Ele balançou o objeto outra vez. O grito que se seguiu foi grotesco, um som que não pertencia a nenhuma pessoa ou animal conhecido. O chão tremeu sob seus pés enquanto a massa disforme se contorcia, derrubando pedras e areia do teto. Heitor protegeu a cabeça, mas logo percebeu que esse não era o único problema.
Havia mais alguma coisa ali. Algo ainda mais perigoso do que aquela criatura se aproximava em silêncio pela escuridão.
— Eu encontrei… — Milhares de crianças berravam em uníssono enquanto avançavam contra o inspetor. — Ele é meu! Meu Bachir!
Não tinha como fugir e ele sabia disso, mas se sentiria melhor se conseguisse deixar um burraco naquilo antes de ser esmagado. Cordeiro se equilibrou, encostando na parede e apontou o revólver para a escuridão, mas foi impedido de puxar o gatilho.
— É melhor achar outro. — A mulher soou definitiva, rente ao ouvido enquanto enroscava os braços gelados em volta do pescoço do policial. — Esse já é meu.
A criatura chiou, furiosa, se contorcendo entre as paredes e o teto.
— Seu? — zombou, cada vez mais perto. — Como se um leão que perdeu as presas pudesse desejar algo.
O túnel inteiro vibrou com o som. Heitor estava imóvel, incapaz de reagir. Aquilo rastejava exalando um cheiro de morte capaz de correr as entranhas, mas não parecia abalar a mulher.
— Tem razão. Ele não ousaria cobiçar o que me pertence. — Os lábios dela roçaram seu rosto. — Afinal, ele não quer perder as garras também.
O perfume das flores se sobrepõe ao odor pestilento do túnel ao mesmo tempo em que a temperatura despencou. Por um instante, Heitor teve a impressão de que não era mais apenas um inspetor perdido numa mina abandonada. As palavras dela tinham o peso de uma sentença ancestral e ele era o alvo de seu desejo.
A criatura parou de se mover, na verdade, parecia estar rastejando para trás quando Cordeiro ouviu uma risada maliciosa soar acima do ombro.
— Agora, o que eu devo fazer com uma coisinha inferior como você…?
Ela não estava falando com o inspetor, mas o tom cortante o fez estremecer. O efeito foi ainda mais brutal naquilo que chorava com a voz de milagres de crianças se contorcendo em desespero.
— Avise aos outros — ela ordenou, e o estalar dos dedos soou como o prenúncio de uma guerra. — Ele é meu!
Um estrondo balançou a mina, enchendo o ar de pó e cascalhos. A criatura urrava pelos túneis se debatendo, enquanto um exército de pés descalços corria de volta para o interior da montanha gritando e gemendo, arrastando um cheiro podre de enxofre e amônia.
Estava difícil respirar e pedras cada vez maiores caiam do teto. Heitor sabia que não tinha muito tempo antes que toda a galeria cedesse. Se apoiando nas paredes para não perder o equilíbrio, tentava refazer mentalmente o caminho até a saída quando ouviu Ramon chamar. A voz vinha além do túnel, mais grave do que o normal, acompanhada de uma marcha pesada.
Não tinha como ser o policial. Na verdade, isso nem era humano.
O ar vibrava a cada passo da criatura e Heitor teve a certeza de que não correria mais rápido do que aquilo que o perseguia. A sensação era a de que estava preso entre duas forças colossais, como um inseto esmagado entre dedos que disputavam quem teria o direito de devorá-lo primeiro.
— Porra! — Virou, erguendo o revólver ao mesmo tempo em que um par de olhos brilhantes se jogou contra ele.
O som do disparo foi abafado pelo barulho da sua cabeça acertando o chão. Uma dor lancinante percorreu a nuca e um gosto metálico misturado com terra preencheu a boca. Quis se mexer, mas as costelas protestaram, esmagadas com o peso de algo monstruoso que caiu sobre ele.
Heitor tentou alcançar o bolso. Talvez, se conseguisse ligar para Ricardo… Não, se ao menos pudesse tocar o alerta no aplicativo que o amigo instalou… Já era tarde demais para isso também.
Ele não sairia dali.
A constatação lhe tirou uma gargalhada que logo se transformou em uma tosse engolfada de sangue. Podia sentir a consciência escorrendo pelos dedos enquanto as pedras despencavam pelo túnel. O mundo girava devagar e os ouvidos zuniam com todas as imagens e sons que se atropelavam em flashes diante dele.
A irmã sorrindo, o pai dirigindo em silêncio, o reflexo de Ricardo no espelho retrovisor, o rosto decepcionado de Melissa e aqueles olhos cor de esmeralda. Todas as lembranças iam se amontoando uma sobre as outras até desmoronarem como se fossem feitas de vidro fino, caindo em estilhaços que desapareciam antes de tocar o chão.
Além dos cacos de memórias, podia ouvir o arfar pesado e compassado daquela criatura que permanecia inerte sobre seu corpo. Parecia que ela também não sairia dali e um certo alívio o fez suspirar. Não foi uma boa ideia, no entanto. Uma dor aguda rasgava os pulmões todas as vezes que puxava o ar para dentro e um gosto de poeira, sangue e ferrugem queimava a garganta quando o ar finalmente escapava para fora.
Seus dedos tremeram, buscando apoio em meio ao cascalho, mas já não havia força para se erguer.
Mesmo sendo difícil entender o que tinha acontecido, não estava com raiva, nem achava injusto. Só parecia engraçado que tudo o que suportou por todos aqueles anos fosse dissolvido tão fácil na escuridão. O medo, a dor e o cansaço que usou para se justificar por tanto tempo simplesmente sumiram de uma única vez.
No fim, havia sobrado apenas o frio e um último pensamento lhe ocorreu: “Então é assim que termina?”.
A cabeça pendeu sem forças para o lado e as íris azuis fitaram o vazio.
— Não, detetive. — Um toque gelado selou suas pálpebras, e ele reconheceu, sem precisar ver, a dona da voz que soava como um decreto. — É assim que começa.