Os Contos de Anima - Volume 1 - Capítulo 03

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Quando preparou seu material para lecionar, Kaella jamais poderia imaginar que, ao dar a primeira aula do ano, encontraria alguém tão interessante.

 

Morava em Elysium há cinquenta anos, desde que fora convidada a integrar o corpo docente de Anansi. O local era um projeto dos moradores para aprimorar as relações entre as diferentes raças que habitavam a vila. O objetivo era incutir nos cidadãos, desde a infância, os ideais de respeito sob os quais Elysium havia sido criada. Além disso, buscava-se propagar o conhecimento dos mestres que se recusavam a viver em qualquer outro lugar, garantindo que esse saber não se perdesse com a morte deles ou ficasse guardado em uma estante empoeirada por longos anos, devorado pelas traças.

 

Esses mestres, como a própria elfa, eram renomados no mundo por suas grandes contribuições e feitos, fossem eles militares, científicos ou criativos. Ao ser convidada, Kaella viu uma excelente oportunidade de transmitir seu conhecimento e, quem sabe, treinar um sucessor que pudesse levar seu legado adiante, expandindo suas ideias com uma nova perspectiva.

 

Até aquele momento, porém, fosse Alfae, Faeram, Gnoma ou Humano, absolutamente nenhum aluno havia demonstrado o que ela mais prezava: o desejo puro por conhecimento e uma vontade ferrenha de desenvolvimento. Kaella aceitou instruir crianças por ser a época em que geralmente demonstravam verdadeiro interesse pelo aprendizado, mas, talvez devido ao conforto de Elysium ou aos ensinamentos dos pais, nenhum aluno encontrado até então havia manifestado sequer um por cento do que ela esperava.

 

A Guardiã de Lybra. Era assim que Kaella era conhecida. Ela era a mestra da terceira geração de uma linhagem de cinco mil anos de preservação histórica, que descendia de outros dois ilustres Alfae que receberam o mesmo título. Graças à longevidade potencialmente ilimitada da espécie, milênios atrás, o então monarca dos Alfae indicou um de seus subordinados à posição de historiador mestre. Ele ordenou que o subordinado viajasse por Anima e registrasse a história do mundo com seus olhos e habilidades, prevenindo potenciais desastres futuros. Eventualmente, com os esforços de múltiplos historiadores e seu líder, o primeiro Guardião, a organização Lybra de preservação histórica foi criada, reunindo informações de todos os cantos do mundo.

 

Com os anos e as intervenções na prevenção e combate a grandes catástrofes, a reputação da Lybra cresceu, acumulando um prestígio inabalável. Sua relevância e presença se tornaram tão grandes que seus representantes foram beneficiados com diversos privilégios e responsabilidades, frequentemente adquirindo cargos honorários e atuando como juízes em inúmeras disputas devido à sua renomada imparcialidade.

 

Como a 3ª mestra da Lybra, era quase garantido que ela receberia o convite para participar do desenvolvimento de Elysium. Ao recebê-lo, ela ficou feliz, afinal, até então os representantes da organização haviam solicitado a entrada e pesquisa do local inúmeras vezes, sendo sempre recusados. Ao finalmente adentrar a comunidade, ela tinha esperanças de encontrar alguém adequado. No entanto, com o passar dos anos, a Alfae se viu severamente desapontada, pois a grande maioria dos que passavam por suas classes de história e costumes alcançavam apenas o aprendizado mínimo necessário, passando grande parte do tempo dormindo.

 

Havia, felizmente, exceções, surgindo na forma de um ou outro aluno que realmente se interessava pela área, e que, às vezes, recebia cartas de recomendação dela para ingressar diretamente na Lybra. Essa rotina era frustrante para quem tinha o objetivo de encontrar um discípulo. Ou pelo menos seria, pois, naquele instante, ela acabara de encontrar aquilo que gastou boa parte dos últimos cinquenta anos procurando.

 

Lucet, aquela criança humana de olhos determinados a saber e que se recusava a ser um ninguém, era o que ela considerava digno do legado que desejava transferir.

 

— Filhote humano, como já disse, existem métodos para testar o potencial e a afinidade de indivíduos com as grandes artes — ela continuou. — Há testes que usam as capacidades mentais, físicas e até espirituais. Mas como não temos a estrutura preparada no momento, o que posso fazer é um teste mais antigo que medirá sua afinidade com as artes arcanas e suas características essenciais. Elas são: sua afinidade geral com a mana, a natureza prática dela e sua afinidade elemental.

 

Ela então balançou o dedo indicador, que brilhou momentaneamente com a cor azul. Uma bolsa que estava ao pé de sua cadeira cintilou e saltou do chão, aterrissando rapidamente na mão aberta da elfa. A bolsa tinha o formato de um saco, mas era feita de um material estranho, escuro e muito lustroso.

 

Ao abri-la, a bolsa emitiu uma breve luz. Lucet ficou na ponta dos pés para tentar enxergar o conteúdo reluzente, mas não tinha altura suficiente para alcançar sequer as mãos da mulher. Kaella inseriu a mão e mexeu por alguns instantes. O saco era pequeno e, ao ver a mão da elfa desaparecer lá dentro, Lucet se perguntou sobre o tamanho real do espaço contido naquela bolsa escura.

 

A busca demorou vários instantes. A elfa girava e mexia o pulso enquanto procurava.

 

Kaella, então, retirou a mão. Nela, havia uma caixa branca retangular com símbolos, círculos e linhas pretas marcadas ao longo dela. Ela colocou a caixa sobre a mesa e o saco lustroso sobre a cadeira, e então se virou para o garoto.

 

— Este é um teste usado pelos Alfae desde muito antes de dominarem o continente luminoso. Ele serve para determinar a provável carreira de suas crianças dias após o nascimento — ela explicou, apontando para a caixa. — Por muito tempo, os Alfae acreditaram que esse cristal determinava o potencial absoluto de cada um, mas, com o desenvolvimento tecnológico e centenas de anos de pesquisa, foi descoberto que apenas mede a capacidade atual, e não a absoluta. Portanto, independente do resultado, saiba que não é definitivo, e que você pode melhorar suas afinidades com esforço e treinamento.

 

Ela pegou a caixa com uma das mãos e pousou a outra sobre os símbolos negros. Sua mão pálida, com os longos dedos reluzindo, posicionou-se em símbolos diferentes, com o polegar sobre o fecho selado da caixa. Pouco a pouco, saindo dos quatro símbolos onde repousavam os dedos reluzentes da elfa, uma luz começou a preencher os círculos e depois as linhas, lentamente transformando todas as linhas pretas em linhas azuis reluzentes. Um clique metálico soou na sala vazia, e a Alfae abriu a caixa, mostrando seu conteúdo para o garoto.

 

A caixa era forrada com um tecido carmesim. Nela, havia um curioso cilindro transparente com a ponta em formato piramidal. Enquanto observava, a criança não pôde deixar de notar que aquilo parecia uma cenoura feita de cristal, só que mais fina e, com certeza, muito mais valiosa.

 

Notando o olhar questionador sobre o objeto, Kaella tratou de explicar o que era antes mesmo que Lucet tivesse a chance de perguntar.

 

— Esta é a Lágrima de Mimir — disse ela, tomando o objeto em suas mãos. — Este cristal tem a função de identificar, através de uma amostra sanguínea, a afinidade do indivíduo com a mana na natureza, o talento aplicado da mana e qual elemento da mana a pessoa tem maior conexão.

 

— Mas… instrutora Kaella — hesitou Lucet — Quando você diz amostra sanguínea, você quer dizer sangue? Você vai tirar sangue de mim? Vai doer? E o que é o talento aplicado e o elemento da mana?

 

— Bem, sim, para fazer este teste, terei que extrair um pouco de sangue, mas não se preocupe, o processo é quase indolor, e a quantidade necessária não é nem de longe o bastante para lhe causar mal — ela respondeu. — Quanto ao talento aplicado e ao elemento da mana, bem, isso já é um pouco mais complexo. O talento da mana, a grosso modo, é em qual área de aplicação alguém consegue utilizar sua mana com mais eficiência.

 

— Área da mana? — ele questionou, curioso.

 

— Sim, todos os usuários da mana são denominados magos, porém, não existe apenas um tipo de mago — ela respondeu, sorrindo. — Existem magos que se especializam no reforço físico e combate corporal, outros no controle dos elementos, outros preferem focar seus esforços nos usos medicinais da mana, enquanto outros mais raros, tais como os Gnoma, se especializam na aplicação de encantamentos ou, em casos ainda mais raros, na invocação de seres.

 

— Já o elemento da mana se refere à capacidade de utilizar um elemento específico em conjunto com a mana natural, tendo assim maior eficiência em algumas aplicações — ela explicou. — Por exemplo, magos usuários da mana elemental da terra são muito melhores em usos defensivos e no reforço corpóreo do que um mago usuário da mana elemental do vento, que é mais focado em usos evasivos e velocidade. Outro exemplo seriam magos que utilizam a mana elemental do fogo, que são muito eficientes em usos puramente destrutivos, do que magos que utilizam a mana elemental da vida, cujo foco é maior em usos medicinais.

 

Apesar de não entender completamente todos os termos, Lucet ficou ansioso. De acordo com a explicação da elfa, a magia era ainda mais complexa e mais interessante do que havia imaginado. Seus olhos, que antes brilhavam com determinação, agora pareciam chamas obstinadas, carregando o ânimo inabalável que o motivava a se tornar um usuário das artes místicas, ou mais especificamente, da magia.

 

Concentrando-se com toda a sua força, Lucet não hesitou mais e esticou a mão trêmula. Seus olhos e rosto apertaram-se em uma carranca. Ele tentava, a todo custo, desviar dos olhos da instrutora para esconder o quão tenso estava naquele momento. Apesar das palavras de Kaella, ele ainda tinha medo da dor. Afinal, nunca precisara tirar sangue voluntariamente, e todas as vezes que sangrou foram devido a machucados, por isso ele associava o procedimento à dor de feridas. Ele ofereceu a parte do braço onde achou que doeria menos, para que pudesse resistir melhor e não passar vergonha com a dor.

 

Com mãos velozes e treinadas, a elfa se moveu, espetando com destreza o objeto no braço estendido da criança. O garoto sentiu uma leve pressão na dobra do cotovelo quando a ponta piramidal atingiu a pele, antes que um objeto fino e gelado a perfurasse, provocando uma leve e efêmera sensação de ter seus músculos puxados naquela direção. Antes mesmo que pudesse notar qualquer dor ou soltar um ‘ai’, o objeto foi retirado. Os dedos reluzentes da instrutora pressionaram a ferida por um instante, curando-a e removendo instantaneamente a dor. Tudo ocorreu tão rápido e com tanta precisão que nenhuma gota de sangue conseguiu escapar, evitando qualquer sujeira.

 

Lucet abriu os olhos e a fitou, descrente. Ele havia tensionado cada fibra do corpo e focado cada partícula da mente para resistir à dor. No entanto, tudo o que sentiu foram algumas pressões que nem sequer conseguiu processar antes de desaparecerem por completo. Mal conseguia acreditar que o ocorrido era real. Mas, ao ver que o objeto, previamente vazio e translúcido, agora repousava novamente na caixa forrada de tecido carmesim, contendo em seu interior um líquido vermelho que o garoto prontamente notou ser o sangue recém-extraído, ele não teve escolha senão acreditar.

 

— M-mas já? O que aconteceu? C-como foi tão rápido? Por que não doeu? — O garoto disparou, assustado.

 

A elfa gargalhou, fazendo as bochechas, as orelhas e o pescoço do garoto ficarem vermelhos como tomates. Era tão curioso ver as reações da criança, tão divertido interagir com o pequeno! Era tão interessante que a fazia sentir cada vez mais que sua busca não fora em vão, e que, apesar de inesperado, aquele humano era alguém digno de despertar seu sincero interesse.

 

— Como eu disse antes, pequeno humano — ela sorriu gentilmente — Os Alfae utilizam essa ferramenta desde muito antes de serem um dos cinco grandes, e, apesar de provada sua falta de precisão absoluta, ainda assim continua sendo muito usada. Graças à minha profissão, já fui convidada a usar esta ferramenta em diversas crianças de todas as raças. Portanto, eu sei exatamente como fazer isso da maneira mais eficiente e menos dolorosa possível. Não é surpresa alguma que você não tenha sentido dor — ela riu. — Surpresa seria se, depois de tantos anos de prática, eu não fosse capaz de evitar uma simples dorzinha como essa.

 

— Nossa… você deve ter feito isso por muito tempo, né? — disse Lucet, admirado. — Aliás, instrutora, quantos anos você tem?

 

— Bem, tenho setecentos e oitenta e três anos atualmente — ela respondeu francamente, com um toque de seriedade em sua voz. — Mas, tome cuidado ao perguntar isso para outras mulheres, criança.

 

— Por quê? — ele perguntou, confuso.

 

— Com exceção das Alfae, mulheres geralmente são mais sensíveis com relação às suas idades, especialmente as humanas. Portanto, não saia perguntando isso por aí do nada, ok?

 

— Entendi, não farei isso de novo — ele acenou com a cabeça.

 

Nesse instante, Kaella, que ainda mantinha ocasionalmente o feitiço de leitura emocional ativo, não conseguiu conter o riso quando viu os próximos pensamentos da criança.

 

“Setecentos e oitenta e três?!? Como assim? Eu sabia que os elfos viviam muito e sempre pareciam jovens, mas setecentos e oitenta e três anos?!? Caramba… ela é suuuuper velha…”

 

Crianças, por mais geniais que fossem, ainda eram crianças, a elfa concluiu em um suspiro. No entanto, ao ouvir o que veio a seguir, ela imediatamente retraiu seu pensamento, uma leve culpa tingindo suas emoções.

 

“Caramba… o que será que ela não sabe? Ela deve saber de tudo, né? Será que ela já viu meus pais? Será que ela tem um jeito de trazê-los de volta? Será que dá para eu vê-los? Ah bem, pergunto isso depois, agora vou virar um mago! Tenho certeza!”

 

A elfa, por mais experiente e sábia que fosse, não foi capaz de reagir imediatamente a isso. Vivia há tanto tempo, já vira tantas mortes e tragédias, tantas famílias partidas, tantas crianças abandonadas ou privadas do conforto e da proteção dos pais, que isso já não pesava tanto em sua consciência. No entanto, ela nunca tivera a oportunidade de interagir com uma delas de maneira tão pura e íntima.

 

Ver as emoções e ouvir os pensamentos de um órfão diretamente em sua mente foi algo diferente, ainda mais para ela, que nunca teve um filho. Antes que pudesse perceber ou conter, lágrimas surgiram no canto de seus olhos e logo rolaram por suas bochechas pálidas e afinadas.

 

Lucet, que a observava fixamente após o riso, reparou e não conseguiu resistir.

 

— Instrutora Kaella… está tudo bem? Por que está chorando?

 

Kaella rapidamente esfregou o rosto com as mãos repetidas vezes, fingindo ter uma coceira particularmente irritante.

 

— N… não é nada, só caiu algo nos meus olhos e está coçando bastante — disse, com um riso forçado na voz.

 

Lucet sentia que algo estava errado, mas, até onde se lembrava, não havia acontecido nada triste e ele também não tinha feito nada para aborrecer a elfa. Portanto, resolveu ignorar sua intuição e apenas se contentar com as próximas palavras da elfa.

 

— Bem, que tal olharmos o resultado do seu teste, hein?

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