Os Contos de Anima - Volume 1 - Capítulo 04

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O cristal agora brilhava. O sangue, que deveria ser vermelho, havia mudado de cor e fora dividido em três partes que reluziam com tonalidades diferentes.

 

Na parte inferior, mais próxima à ponta piramidal, o sangue tornara-se azul, piscando intermitentemente até que o número setenta e dois surgisse e fosse gravado no cristal. Na seção central, o sangue transformou-se em uma névoa roxa, e a silhueta de uma mão apareceu gravada. Por último, na parte superior, o sangue converteu-se em areia, e o símbolo de uma pedra surgiu no cristal.

 

A elfa pegou o cristal e o analisou por um tempo, sua expressão alternando entre diversas emoções.

 

“Afinidade com a mana de setenta e dois!? Como é possível!? Já é raro um humano ter qualquer valor acima de cinquenta, mas setenta e dois!? Isso já é um nível decente para um Alfae! E ele só tem oito anos! Se ele for treinado em magia da forma correta… Esse filhote humano é um verdadeiro tesouro! Com uma guia adequada, ele pode até mesmo alcançar o poder dos…”.

 

Porém, antes que pudesse concluir seu pensamento, algo peculiar aconteceu. O valor que antes mostrava setenta e dois, por um brevíssimo instante, subiu para oitenta e depois voltou ao valor original, apenas para, no próximo instante, cair para cinquenta e dois e rapidamente retornar ao valor inicial.

 

Confusão pintou o semblante de Kaella. “Valor instável? O que está acontecendo? Será que a Lágrima está quebrada? Mas como? Certifiquei-me até de usar uma caixa de alvana com um selo de quatro pontos… Não… A Lágrima está funcionando perfeitamente, tem de estar! Mas… Se o medidor não é o problema, então só pode ser…”.

 

A instrutora fitou o garoto e reparou que sua expressão mudava constantemente, passando de alívio para calma, depois para pânico, formando um ciclo constante de nervosismo e uma tentativa falha de manter um semblante tranquilo. Enquanto isso ocorria, a elfa analisou o cristal e comparou a leitura com a avaliação emocional que realizava na criança.

 

“Hum… Quando está calmo, o valor se estabelece em setenta e dois; quando está confiante ou irritado, o valor sobe para oitenta; e quando se sente intimidado ou desesperado, o valor baixa para cinquenta e dois… Peculiar… Será que ele é um…” Uma suspeita brotou na mente da mulher, uma suspeita que prontamente tentou confirmar, porém, sem sucesso.

 

— Lucet — ela chamou.

 

— S-Sim, instrutora, a-algo de errado? — ele respondeu, nervoso.

 

— Não há nada de errado, apenas tenho uma dúvida que quero confirmar, fique tranquilo — ela respondeu, acalmando-o quase instantaneamente.

 

— É mais um teste, instrutora? — ele questionou, desconfiado.

 

— Nada disso — ela respondeu — Eu gostaria de saber se você conhece seus pais.

 

— Meus pais? — ele respondeu um tanto surpreso — Não os conheci, o diretor do orfanato disse que fui entregue a ele por um casal quando eu era bebê. Por quê?

 

— Hum… Por nada, apenas curiosidade — ela sorriu — Bem, vamos então aos resultados?

 

— Sim! Por favor! — ele disse entusiasmado e um tanto apreensivo.

 

Ela trouxe o cristal diante da vista do garoto e apontou para a seção inferior.

 

— Está vendo essa parte azul com um número? — ela perguntou, sua voz gentil, tranquilizando-o.

 

Lucet acenou com a cabeça.

 

— Aqui é medida sua afinidade com a mana através de uma pontuação que varia de zero, para alguém incapaz de usar mana, a cem, que é a afinidade máxima, tal como a dos mais poderosos Alfae. Quanto mais próximo de cem, maior a facilidade e eficiência no uso da mana.

 

— Como pode ver — ela disse, apontando para o número gravado no cristal — A sua afinidade é de setenta e dois pontos, o que para um humano, é algo bem alto.

 

Ao ouvir a notícia, Lucet não pôde conter o largo sorriso que nasceu em seu rosto. Suas mãos tremiam enquanto sua mente vibrava de alegria. Sim! Ele poderia se tornar um mago! Ele não seria um inútil, nem seria zombado; não precisaria inventar desculpas ou ter medo de ser alguém medíocre. A própria instrutora dissera que ele tinha uma afinidade alta para um humano! A não ser que esse fosse seu desejo, seu destino era claro, e ao menos para um humano, sua carreira estava garantida.

 

Kaella observou o garoto enquanto analisava suas emoções. À medida que a criança se sentia mais segura e confiante, o valor subia gradativamente até parar na numeração oitenta e se fixar ali. Sabendo que não era algo simples ou, se seu palpite estivesse correto, seguro, a mulher preferiu esconder este fato e passou um dedo coberto numa furtiva aura cinzenta sobre o número, que prontamente mudou e se fixou no valor de setenta e dois novamente.

 

— Bem, agora vamos analisar o resto dos seus resultados.

 

Lucet despertou de sua celebração e olhou novamente para o cristal nas mãos da elfa. Desta vez, ela apontava para a seção do meio. Lá, um símbolo de uma mão gravada reluzia com um brilho roxo, enquanto uma névoa da mesma cor habitava a parte.

 

— Nesta seção, a sua afinidade prática é medida, e um símbolo é atribuído, indicando qual tipo de magia você conseguirá executar com mais facilidade e eficiência — Ela explicou.

 

Kaella, então, esticou a mão e separou os dedos. As pontas de todos os dedos reluziram, fazendo com que, instantes depois, surgissem cinco pequenos símbolos, um em cada ponta. Em seu mindinho surgiu uma bola de fogo, em seu anelar, uma cruz branca, no seu dedo do meio, um vórtice, no seu indicador, uma espada e, no seu polegar, apareceu uma mão, idêntica àquela gravada no cristal.

 

— Apesar da natureza complexa dos usos da mana como um todo — ela disse — As áreas de aplicação e utilização da magia foram extensivamente estudadas e, eventualmente, divididas em cinco categorias. Neste sistema, cada categoria concede aos seus magos um título que exalta a afinidade do mago e lhe dá uma identidade na sociedade arcana.

 

A elfa levantou seu mindinho, injetando um pouco de mana no local, aumentando o brilho e, eventualmente, o tamanho da esfera flamejante.

 

— Este símbolo, uma bola de fogo — ela disse, chamando a atenção do garoto para a esfera ampliada — Representa a afinidade elemental física. Magos desta categoria são conhecidos como Elementalistas e podem controlar os elementos com mais eficiência que as outras categorias. Contudo, apesar dessa facilidade, eles acabam por optar pela especialização em um elemento específico, afinal, é bem mais fácil alcançar a maestria no uso de um elemento só. Porém, com dedicação, tempo e sorte, não é incomum ver magos que conseguem controlar dois ou três elementos com maestria, e os que são capazes de tais feitos recebem seus próprios títulos.

 

Kaella abaixou o dedo, e o brilho, junto com o símbolo da esfera flamejante, dissipou-se. A elfa, então, levantou o dedo anelar e, com uma breve infusão de energia, o símbolo sobre ele cresceu.

 

— Este símbolo, a cruz branca — ela continuou — Representa a afinidade espiritual da luz. Magos desta categoria são conhecidos como Serafins e têm a capacidade exclusiva de manipular a mana da luz e estimular a cura natural do corpo a níveis sobrenaturais para tratar feridas ou doenças, além de serem capazes de combater maldições e expurgar, sem uso de antídotos e até certo nível, venenos e toxinas do corpo adoecido. Uma profissão nobre e muito valiosa, pois a afinidade com a mana da luz é extremamente rara. Na maioria das vezes, aqueles que possuem essa afinidade são seres bondosos e gentis que acabam sendo protegidos por todos ao seu redor. Portanto, aconselho-o a nunca provocar um destes, ou pode acabar com toda uma legião caçando sua cabeça.

 

Um arrepio subiu pela espinha de Lucet, e ele acenou a cabeça repetidamente. O dedo se abaixou, fazendo dissipar a existência da cruz. A mulher, então, levantou o dedo do meio, e, após uma injeção de mana, o vórtice expandiu e girou ainda mais rápido, fazendo o ar ao seu redor convergir na sua direção e se distorcer ao se aproximar das suas bordas.

 

— O vórtice — ela disse — um símbolo peculiar que representa a afinidade dimensional. Os magos desta categoria são conhecidos como Invocadores e podem se conectar com outras dimensões, realizando contratos com os seres residentes e ganhando seu poder e a capacidade de invocá-los para este plano, podendo então usá-los para variados fins. Porém, esse poder só existe contanto que não quebrem as cláusulas do contrato, pois, caso quebrem, o contrato é terminado e o ser contratado é retornado à sua dimensão, enquanto o invocador perde a habilidade de realizar um contrato com aquele ser novamente.

 

— Mas instrutora… — Lucet disse, confuso — Qual é o problema do invocador perder a habilidade de contratar um ser específico? Ele não pode simplesmente fazer um contrato com outro?

 

— Não é tão simples, criança — ela riu — Um invocador muitas vezes só consegue realizar um contrato em toda sua vida, devido ao alto preço e às imensas restrições que existem para realizá-lo. No entanto, o que os torna especialmente perigosos é justamente o fato de que, uma vez realizado o contrato, por ele ser tão restritivo, o poder concedido ao invocador é igualmente enorme — a Alfae, então, soltou um suspiro e disse — É nessas horas que você vê que a natureza é sábia e justa, afinal, nada mais justo que, quanto maior o investimento, maior a recompensa, não?

 

Lucet ficou em silêncio, pensativo. Nisso, Kaella novamente abaixou o dedo e extinguiu a luz e o símbolo. Prontamente, ergueu seu indicador e expandiu a espada que flutuava na ponta.

 

— Já esta é uma classe um tanto incomum — Ela comentou, chamando novamente a atenção do garoto — A espada representa a categoria dos magos que são conhecidos como Avatares. Eles são capazes de usar a mana tal como os elementalistas, mas com uma diferença: só podem usá-la para reforçar suas capacidades físicas, não podendo manipular os elementos tão livremente quanto eles. Porém, não pense que são fracos, afinal, eles também têm a capacidade única de atribuir características sobrenaturais a objetos, o que os torna candidatos ideais para se tornarem ferreiros mágicos.

 

— É difícil encontrar um mago guerreiro que não seja também um ferreiro mágico — Ela comentou — Ou que pelo menos tenha um conhecimento rudimentar na fabricação de equipamento mágico. São ótimos aliados e, como deve se lembrar do conteúdo de nossa aula, tem entre os seus os mais populares ferreiros mágicos, que também são formidáveis guerreiros, os mestres Gnoma. Portanto, quando pensar em lutar contra um, pense duas ou três vezes se é isso mesmo que você planeja fazer.

 

Lucet, a essa altura, já estava calmo. A euforia da notícia de sua capacidade de ser um mago já havia se estabilizado e, tal como ocorrera em aula, ele se encontrava novamente encantado com a elfa e seu conhecimento. Kaella, que podia facilmente ver os pensamentos do garoto, não pôde conter um breve sorriso ao observar não apenas o rosto de fascinação da criança como também seus pensamentos entusiasmados.

 

Por fim, a elfa baixou o indicador. Contudo, em vez de levantar o polegar, o último símbolo moveu-se para o centro da sua palma aberta. A mão toda, então, começou a brilhar enquanto o símbolo se expandia até ficar do mesmo tamanho da mão da mulher.

 

— E por último, o símbolo que representa a afinidade espiritual sombria, a mão púrpura — ela continuou — Os magos desta categoria são conhecidos como Corvos e possuem uma reputação um tanto… ruim. Mestres da noite, têm imensa facilidade no uso de ilusões e na manipulação de objetos inanimados para vários fins. Além disso, possuem o talento único de serem capazes de utilizar a mana das sombras. No entanto, diferente dos Serafins, não são presos a ela, podendo utilizar todos os elementos, apesar de que com menos eficiência que qualquer outra classe de mago, devido ao baixo potencial ofensivo natural da mana das sombras.

 

— Mas por que eles possuem uma reputação ruim? — Lucet questionou, curioso.

 

— A maioria dos magos desta categoria são infames por serem trapaceiros, desleais e, devido às suas habilidades furtivas, espiões ou até mesmo assassinos de aluguel — ela explicou, um traço de desdém surgindo em sua voz — Por isso, a maioria da população os vê como magos malignos e tem o hábito de caçá-los em nome da justiça e outras hipocrisias estúpidas.

 

— Espera um pouco… — Lucet disse, pensativo, enquanto olhava para ambos, o símbolo e o cristal — Se esse símbolo significa a existência dos Corvos e ele apareceu no meu teste, então…

 

— Exatamente, criança — Kaella respondeu, sorrindo — Você será um Corvo, se quiser. Você será cruel, se assim desejar. O fato de ser capaz de usar as sombras não lhe obriga a usá-las; se você quiser, pode muito bem evitar o aprendizado desse poder e treinar apenas com os elementos “normais”. Mas sabe de uma coisa? Nem sempre as sombras são um poder maligno.

 

Nisso, o símbolo desapareceu. Não apenas o símbolo desapareceu, mas um vórtice negro surgiu na palma da elfa e sugou toda a sala para dentro de si, deixando apenas os dois flutuando na escuridão.

 

— As sombras escondem muito poder, tão devastador quanto bondoso — Kaella falou, sua voz ecoando pelo vazio.

 

Instantes depois, lampejos começaram a aparecer diante do par. Todas as capitais foram vistas novamente com todo seu esplendor, depois, a borda de uma cratera vulcânica com um calor infernal que parecia derreter até as roupas que vestiam, após isso, o centro de uma geleira com um frio que congelava até o pensamento, e, por último, uma caverna reluzente, repleta de energia. Tantas imagens e sensações bombardearam o garoto que ele mal sabia exatamente o que sentir e o que pensar.

 

— Para aqueles que habitam nas sombras, a escuridão é sua casa, e, em seu domínio exclusivo, tudo está sob seu controle e vontade.

 

Um estalar de dedos soou, e mais uma vez tudo foi sugado para dentro do vórtice negro, apenas para, depois, a aparência normal da sala ser regurgitada e preencher novamente o local.

 

Lucet ficou em silêncio, seus olhos arregalados enquanto um sorriso bobo enfeitava seu rosto.

 

— V… Você é um Corvo? — ele gaguejou, mal contendo a alegria em sua voz.

 

— Sim — ela respondeu, sorrindo — Mas não conte a ninguém, esse será nosso segredinho, pequeno corvo.

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